sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Quem se lembra?

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 12 FEVEREIRO DE 1999)


Numa visita recente ao que resta da família que ainda vive na minha cidade, agora só a nível de primos direitos, em conversa que procurou recuarmos no tempo, foi-me chamado à memória uma figura que estava arrecadada no meu subconsciente. Quando a minha prima me falou dela, não conseguia saber quem era, mas quando o nome lhe ocorreu e o pronunciou, o meu cérebro funcionou ao ritmo de um moderno computador e a minha memória trouxe-me a figura que tentarei reproduzir por palavras.

Era minha vizinha, morava do outro lado da rua, no último quarteirão da Avenida. Lembro-me do pai e da sua actividade profissional na área da camionagem. Da mãe, nada me recordo e penso que era filha única.

A casa onde viveu, um rés-do-chão, já não existe, tendo-se construído na sua área um prédio de 1º andar e isto se a minha recente memória não me atraiçoar.

Eu tinha os meus seis, sete anos, quando muito. Ela, rondaria os vinte. Alta, loura, elegante, para o forte sem ser gorda, arranjava-se muito bem e numa época em que raramente as mulheres o faziam pelos motivos mais diversos.

Estaríamos em finais da década de quarenta.

Cabelo impecável, bem pintada e maquiada. Vestia e calçava na moda e tinha extenso guarda roupa. O branco e as ramagens, segundo a minha memória, mereciam a sua predilecção.

Não era propriamente uma mulher bonita, mas sem dúvida que era extremamente vistosa, sabendo realçar os pontos que a natureza melhor a dotou.

Muitos a consideravam a mulher mais vistosa e bonita do Meu Bairro.

Casou cedo e tenho uma vaga ideia do seu casamento, lembrando-me muitíssimo bem do marido, um beirão cuja família se fixou por esta cidade onde ainda se mantém, ainda que ele, pouco tempo depois de casar tivesse tomado o rumo de Moçambique, com a mulher.

Em casa de meus pais existiam algumas fotografias dela, ao seu estilo e talvez as minhas observações tenham mais a ver com as fotografias do que com a realidade.
Ainda houve troca de correspondência e de fotografias mas foi-se diluindo com o tempo, apesar de nunca ter sido esquecida.

*
Um dia, teria eu dezasseis, dezassete anos e quando ninguém a esperava, apareceu a visitar os meus pais.

Os anos tinham passado, agora já era uma mulher bem madura que procurava e de certa maneira conseguia, encobrir os anos.

A sua alegria e vivacidade mantinham-se tal como o gosto de ser admirada, de chamar a atenção.

Lá esteve conversando com os meus pais, conversas a que não assisti. O que me recordo bem é de me ter pedido, com aquele sorriso maroto que lhe era peculiar, para a ir levar a casa de familiares do marido que tinha ficado em África. Nessa altura parecia mal as senhoras andarem sozinhas !

Se por um lado fiquei eufórico por poder acompanhar mulher tão vistosa, por outro senti receio de não sei de quê.

Saímos. De imediato me deu o braço. Pisava o chão como ela sabia, firme e ritmicamente. Eu ali só servia de fraca bengala de adorno.

Lá fomos andando segundo a sua orientação. Por onde passávamos, todos olhavam. Ela, portava-se como uma senhora, elegante, vistosa, bonita, apesar de já não ser propriamente uma jovem. Eu, um rapazeco que nunca me tinha visto em tal situação, sentia-me embaraçado e desejoso que o trajecto acabasse.

O que aconteceu ? Em lugar de seguirmos o caminho mais directo para o Bairro do Milagre, levou-me por outro trajecto, passando no centro da cidade e junto ao desaparecido Café Portugal, tudo locais onde se encontravam os “mirones”
Era uma época em que ainda se usava o piropo e com a passagem da “brasa”, não podiam faltar e cada vez que se ouvia, sentia um apertão no meu braço.

Quando chegámos ao destino, se por um lado me senti ufano por acompanhar aquela mulher, por outro senti um grande alívio de que não sei definir os contornos.

Tive conhecimento anos depois que visitou familiares meus em Lisboa, regressando a África, mais propriamente à África do Sul onde me consta ter falecido.

Pergunto à gente do Meu Bairro que nele viveu na década de quarenta, quem se lembra dela ? Se dissesse o nome, muitos se lembrariam, talvez melhor do que eu! Mas isso, eu não vou fazer.