segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

A morte

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 23 DE DEZEMBRO DE 1998)


Como a doença muitas vezes nos leva à morte, resolvemos, e em seguimento da Memória anterior, pôr a memória a funcionar e tentar reproduzir o que então se passava no meu bairro.

Ainda que no fundamental as coisas se repitam, existem diferenças acentuadas de procedimento.

Após exalar o último suspiro, familiares, por vezes auxiliados por vizinhos, procediam ao amortalhar, operação que tinha de ser feita com o maior carinho. Se a morte estava prevista, a mortalha já estava preparada e constituída pelo melhor que o defunto possuía. Tratando-se de pessoa idosa do sexo feminino, era ela própria que a gostava de preparar, enquanto tinha saúde, muitas vezes feita pelas suas mãos. Transmitia o facto e o desejo aos familiares mais próximos, principalmente à filha mais velha, quando existia, a fim de ser satisfeita a sua vontade.

Cumprindo o ritual da higiene, o cadáver era lavado e quando homem, a barba cortada, sendo de seguida vestido, o que deve ser feito ainda com o corpo quente, já que assim é maleável.

A divisão mais espaçosa da casa, muitas vezes a casa de jantar ou casa de fora, era transformada em câmara ardente. Os móveis tapados com panos pretos, o caixão e em casos mais raros, a urna, colocado no meio da casa, ladeado por cadeiras. Sinais do culto católico já que só muito excepcionalmente, e isto para não dizer nunca, se praticava outro.

Já se usavam as velas de cera (estearina) mas a maioria da gente preferia a lamparina de azeite.

Familiares mais distantes, vizinhos e amigos iam chegando, invariavelmente vestidos de preto ou escuro, para apresentar condolências e muitos velarem o defunto até à hora do funeral. Ouvia-se dizer que era a última noite que se podia acompanhar aquele ou aquela que tantas vezes se havia acompanhado noutras circunstâncias.

Alguma vizinha ou familiar mais afastado fazia um caldinho de galinha para matar a fraqueza e um café forte para afastar o sono.

Havia sempre junto ao defunto alguns dos familiares dos mais chegados, vestindo todos de preto. Se de momento não era possível os homens vestirem de negro usavam um fumo preto no casaco mais escuro que tivessem e mesmo na lapela. Se fosse necessário, as mulheres rapidamente tingiam as suas roupas.

Chegava a hora do funeral. Os acompanhantes começavam a chegar, apresentavam os “sentimentos” a quem de direito e formavam grupos junto da porta por onde ia sair o caixão. Entretanto aparecia a carreta, onde o negro e dourado se impunham. Dois homens, vestidos de preto, puxavam-na.

Após a retirada do caixão com as cenas próprias provocadas pelo desgosto por que se estava passando, era amarrado à carreta por intermédio de cintos afivelados e lá seguia a caminho do cemitério dos Capuchos com o padre exercendo a liturgia referente ao acto.

Os homens puxavam a carreta, um de cada lado do varão e quando aparecia uma subida mais acentuada, neste caso na Rua António dos Santos, junto à oficina da então Camionagem Ribatejana, tinha de haver ajuda prestada pelo patrão (vulgo cangalheiro), que seguia na retaguarda, normalmente com uma das mãos já colocada na carreta.

Os familiares mais chegados seguiam logo atrás. As acompanhantes levavam ramos de flores cujo pé se resguardava com uma “prata”.

Ao portão do cemitério, o caixão ou urna era retirado da carreta funerária para seguir na própria do cemitério, a caminho da sepultura. Havia igualmente a possibilidade de ser levado à mão ou ao ombro por camaradas, amigos ou companheiros, o que acontecia algumas vezes.

Na altura era raro a missa de “corpo presente” e não tenho a certeza porquê mas presumo que fosse por uma questão económica.

Junto à sepultura, o padre terminava as exéquias. Depois, havia a possibilidade do despedimento dos familiares e amigos, o que normalmente acontecia. O caixão era colocado no fundo da cova e os coveiros completavam o seu trabalho. Havia sempre algum familiar menos chegado que permanecia no local até à conclusão dos trabalhos após os quais se dirigia aos familiares mais próximos transmitindo a situação.

As viúvas tinham luto para a vida inteira e durante certo tempo que já não posso determinar cobriam a cabeça com uma espécie de mantilha preta.

Havia outras regras de luto pela morte de familiares que igualmente não posso precisar e na qual se englobavam o luto carregado e o aliviado.

Ainda que alguns aspectos se mantenham, a verdade é que existem grandes diferenças com o que se passa hoje, de tal maneira que esta Memória será considerada pelos jovens do meu bairro como sendo factos ocorridos há centenas de anos!