sábado, 16 de janeiro de 2010

A doença

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 31 DE DEZEMBRO DE 1998)


[A Avenida no Meu Bairro. Foto JV, 1992]

Há quarenta, cinquenta anos, período básico a que se reportam estas modestas croniquetas, as reacções perante a doença pouco tinham a ver, como é natural, com o que se passa hoje.

O sistema assistência era praticamente nulo. Só as misericórdias continuavam a sua acção de séculos, destinada aos mais desfavorecidos.

Naqueles tempos, havendo problemas de saúde, só em casos urgentes ou muito graves se recorria ao hospital. De uma maneira geral, chamava-se a casa o médico e cada família tinha o seu, não com o significado que tem hoje o médico de família Era então que o médico verificava se o doente tinha necessidade de ser internado no hospital, o que se fazia em último caso.

O hospital de então, que ficava à entrada do meu bairro, pertencia à Misericórdia, o Hospital de Jesus Cristo, fundado por João Afonso de Santarém que absorveu mais de uma dezena que então existiam na vila de Santarém.

Nessa altura, a enfermagem era feita pelas irmãs da caridade, como lhe ouvia chamar quando lá ia pela mão de minha mãe, visitar familiares e amigos.

As enfermarias, eram enormes, foi uma ideia que me ficou.

Por esses tempos e que eu me lembre, não residia no bairro qualquer clínico e muito menos existia consultório médico – tudo então estava concentrado no centro do velho burgo. A maior parte das vezes o consultório funcionava na própria habitação do médico a que se tinha retirado para o efeito, duas salas, a de espera e a do consultório propriamente dito.

A chamada do clínico era feita através de um familiar ou vizinho do doente que se deslocava à residência ou consultório, solicitando a presença do médico que normalmente não se fazia esperar.

Deslocava-se muitas vezes a pé, passando depois a fazê-lo de automóvel e por estas alturas os médicos possuíam quase todos uma “arrastadeira”, como era conhecido determinado modelo de uma conceituada marca de veículos automóveis.

O médico ia encontrar o doente no leito e ao abeirar-se dele, “tomava-lhe o pulso”, isto é, avaliava qual o ritmo cardíaco procurando verificar se havia febre. Depois, por intermédio do ouvido, auscultava o paciente na tentativa de perceber os ruídos que se produziam no interior do organismo.

Só mais tarde se começou a utilizar o termómetro, quase sempre trazido pelo próprio médico, e o estetoscópio.

Após o exame, o médico era encaminhado ao lavatório de ferro ou de madeira, onde se encontrava a toalha de linho, poucas vezes servida, o sabonete colocado na saboneteira de louça ou de esmalte, quase sempre a estrear e naturalmente o jarro de água a condizer com a saboneteira. Só depois os médicos começaram a pedir algodão e álcool.

A dona da casa ou a pessoa que a substituía, perguntava então se a doença era alguma coisa de maior cuidado, isto enquanto o médico ia passando a receita, indicando como os medicamentos deviam ser tomados e fazendo as considerações que julgava pertinentes.

À saída, o chefe da casa ou quem as suas vezes fizesse, perguntava ao médico quanto lhe devia e efectuava o pagamento.

Lembro-me que na altura ainda se usava com alguma frequência as ventosas, os clisteres, as papas de linhaça, os sacos de água quente e de gelo. Os caldinhos de galinha ainda se usavam como dieta.

As injecções estavam em grande uso pelo que existiam na cidade vários profissionais desta arte a que se recorria quando necessário. Lembro-me de três residindo no meu bairro, sendo um o saudoso Francisco Leonor, conhecido por todos por Sr. Chico enfermeiro. Além de ser um conceituado profissional, era uma excelente pessoa, extremamente afável. Nunca passava por ele que não tivesse uma palavrinha para o miúdo que conhecia quase desde que nasceu.

Durante a minha vivência no bairro, cerca de vinte anos, dei entrada duas vezes no hospital, uma pelo corte da língua e outra num pé. A segunda, de que ainda possuo cicatriz, foi mais complicada, havendo necessidade de uma pequena intervenção cirúrgica. Os factos tiveram lugar quando tinha quatro, cinco anos e foi um amigo da família de nome, Manuel Machado há muito desaparecido que me tirou do colo de minha mãe e que acabou por me levar ao hospital. Apesar dos muitos anos passados, tenho tudo presente na minha memória.

Aqui fica esta Memória, sentida e compreendida pelas gentes do meu bairro e da minha época mas que aos jovens de hoje, parece pertencer à época medieval.