sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Quem se lembra?

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 12 FEVEREIRO DE 1999)


Numa visita recente ao que resta da família que ainda vive na minha cidade, agora só a nível de primos direitos, em conversa que procurou recuarmos no tempo, foi-me chamado à memória uma figura que estava arrecadada no meu subconsciente. Quando a minha prima me falou dela, não conseguia saber quem era, mas quando o nome lhe ocorreu e o pronunciou, o meu cérebro funcionou ao ritmo de um moderno computador e a minha memória trouxe-me a figura que tentarei reproduzir por palavras.

Era minha vizinha, morava do outro lado da rua, no último quarteirão da Avenida. Lembro-me do pai e da sua actividade profissional na área da camionagem. Da mãe, nada me recordo e penso que era filha única.

A casa onde viveu, um rés-do-chão, já não existe, tendo-se construído na sua área um prédio de 1º andar e isto se a minha recente memória não me atraiçoar.

Eu tinha os meus seis, sete anos, quando muito. Ela, rondaria os vinte. Alta, loura, elegante, para o forte sem ser gorda, arranjava-se muito bem e numa época em que raramente as mulheres o faziam pelos motivos mais diversos.

Estaríamos em finais da década de quarenta.

Cabelo impecável, bem pintada e maquiada. Vestia e calçava na moda e tinha extenso guarda roupa. O branco e as ramagens, segundo a minha memória, mereciam a sua predilecção.

Não era propriamente uma mulher bonita, mas sem dúvida que era extremamente vistosa, sabendo realçar os pontos que a natureza melhor a dotou.

Muitos a consideravam a mulher mais vistosa e bonita do Meu Bairro.

Casou cedo e tenho uma vaga ideia do seu casamento, lembrando-me muitíssimo bem do marido, um beirão cuja família se fixou por esta cidade onde ainda se mantém, ainda que ele, pouco tempo depois de casar tivesse tomado o rumo de Moçambique, com a mulher.

Em casa de meus pais existiam algumas fotografias dela, ao seu estilo e talvez as minhas observações tenham mais a ver com as fotografias do que com a realidade.
Ainda houve troca de correspondência e de fotografias mas foi-se diluindo com o tempo, apesar de nunca ter sido esquecida.

*
Um dia, teria eu dezasseis, dezassete anos e quando ninguém a esperava, apareceu a visitar os meus pais.

Os anos tinham passado, agora já era uma mulher bem madura que procurava e de certa maneira conseguia, encobrir os anos.

A sua alegria e vivacidade mantinham-se tal como o gosto de ser admirada, de chamar a atenção.

Lá esteve conversando com os meus pais, conversas a que não assisti. O que me recordo bem é de me ter pedido, com aquele sorriso maroto que lhe era peculiar, para a ir levar a casa de familiares do marido que tinha ficado em África. Nessa altura parecia mal as senhoras andarem sozinhas !

Se por um lado fiquei eufórico por poder acompanhar mulher tão vistosa, por outro senti receio de não sei de quê.

Saímos. De imediato me deu o braço. Pisava o chão como ela sabia, firme e ritmicamente. Eu ali só servia de fraca bengala de adorno.

Lá fomos andando segundo a sua orientação. Por onde passávamos, todos olhavam. Ela, portava-se como uma senhora, elegante, vistosa, bonita, apesar de já não ser propriamente uma jovem. Eu, um rapazeco que nunca me tinha visto em tal situação, sentia-me embaraçado e desejoso que o trajecto acabasse.

O que aconteceu ? Em lugar de seguirmos o caminho mais directo para o Bairro do Milagre, levou-me por outro trajecto, passando no centro da cidade e junto ao desaparecido Café Portugal, tudo locais onde se encontravam os “mirones”
Era uma época em que ainda se usava o piropo e com a passagem da “brasa”, não podiam faltar e cada vez que se ouvia, sentia um apertão no meu braço.

Quando chegámos ao destino, se por um lado me senti ufano por acompanhar aquela mulher, por outro senti um grande alívio de que não sei definir os contornos.

Tive conhecimento anos depois que visitou familiares meus em Lisboa, regressando a África, mais propriamente à África do Sul onde me consta ter falecido.

Pergunto à gente do Meu Bairro que nele viveu na década de quarenta, quem se lembra dela ? Se dissesse o nome, muitos se lembrariam, talvez melhor do que eu! Mas isso, eu não vou fazer.

domingo, 24 de janeiro de 2010

O "Pão por Deus"

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 31 DE OUTUBRO DE 1991)


Pedir o Pão por Deus, os Santinhos ou Santos, ou os Bolinhos, vem a significar a mesma coisa; a sua aplicação varia de zona para zona, de pessoa para pessoa.

Na região do Ribatejo e na Estremadura, é mais vulgar o uso da primeira designação, daí a nossa utilização como título de mais um Tema Varzeense.

Este velho costume relaciona-se com o culto dos mortos e espalha-se por todo o país mas com diferenças acentuadas de zona para zona, de região para região.

Desde os tempos neolíticos que aparecem manifestações de culto dos mortos sobre a forma de vestígios de consagração de alimentos sobre os locais de enterramento.

[Saco de retalhos que foi substituído pelo de plástico]

Pedir o “Pão por Deus”, cantar “As Janeiras” e “Os Reis”, entre outras, são épocas de peditórios cerimoniais, enquanto a Páscoa e o Natal, são de ofertas.

A castanha que é o produto próprio da estação e que teve grande importância na economia alimentar de outros tempos no Norte do País, e os bolos próprios da ocasião, tinham e ainda têm grande significado em quase todas as regiões.

A razão das esmolas que se pedem nesta festividade cívica, deve procurar-se na natureza especial das comemorações a que respeitam as datas em que se verificam.

Em muitos lugares acredita-se que uma vez por anos, no dia consagrado aos mortos, as almas dos defuntos vêm à terra visitar os lugares que em vida habitaram. Fazem-se por isso bolos destinados às almas, peditórios e esmolas desses bolos e em alguns locais chegam mesmo a pôr a mesa para os defuntos.

***


Depois destas notas de carácter geral obtidas no excelente trabalho de Ernesto Veiga de Oliveira, intitulado ”Festividades Cíclicas em Portugal”, e que nos ajudam a compreender melhor o tema, iremos referir o que se passa a nível da freguesia da Várzea.


Ainda que não tenha aspectos bem marcantes, a verdade é que também aqui se festeja o Dia-de-Todos os Santos. Assim, nesse dia, em caso todas as casas se comem castanhas, nozes, passas de figo, de uva ou de ameixa, amêndoas, etc. Era também uso a oferta entre vizinhos e amigos daqueles produtos que cada qual colhia. Por outro lado e talvez o mais significativo, realizava-se o peditório do “Pão por Deus”.

Logo pela manhã as crianças começavam a pedir aos pais para as deixar ir ao “Pão por Deus”.

Faziam-no com grande entusiasmo e organizavam-se em grupos que percorriam as aldeias mais próximas, batendo de porta em porta.

Notar que nos grupos encontravam-se crianças de todos os extractos sociais.

Lá iam de saco, ainda não plástico, às costas, começando, para se desinibirem, pelos vizinhos com quem estavam mais familiarizados. Nalguns casos eram os pais os primeiros dadores.

Os adultos gostavam sempre de saber o que levavam, alguns diziam que não tinham nada para lhes dar mas acabavam sempre por arranjar alguma coisa.

O mais vulgar que davam, traduzia-se como é natural, nas suas produções e assim apareciam nozes, amêndoas, passas de figo, uva ou ameixa, romãs, marmelos e maçãs, quando não bolos caseiros feitos para o efeito. As castanhas eram nessa altura mais difíceis de dar já que as tinham de comprar.

Com o andar dos tempos, além das castanhas começaram a aparecer os rebuçados, os bolos empacotados e mesmo o dinheiro.

Quem dava, tinha a preocupação de fazer uma distribuição equitativa e se alguma diferença havia era em relação aos mais pequenos. Por outro lado, tinha de contar com os que ainda estavam para vir pois pretendiam contemplar todos.

[As meninas (*) que pediram "o pão por Deus." Foto JV]


A última vez que sentimos o “Pedir o Pão por Deus” foi há cerca de seis anos, quando assistimos ao regresso a casa de três pequeninas, minhas familiares que traziam os sacos cheios das “iguarias” já referidas. Vinham cansadas mas radiantes. Senti o pulsar empolgante dos seus coraçõezitos. Pedi e deram-me explicação da tarefa que nessa tarde de 1 de Novembro se propuseram realizar.

Mais uma vez a tradição tinha sido cumprida.
E continua.

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* A do meio é hoje mãe de duas meninas, a mais nova, Zita, badalado do blogue Alcoutim Livre, a mais velhinha é a mãe da Carminho que originou a última entrada da rubrica "da barriguinha da mamã" no Alcoutim Livre. Da mais novinha, espero que me dê o Pedro, que será o meu 1º terceiro-sobrinho!

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Francisco de Brito Freire

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 23 DE FEVEREIRO DE 1996)

Coruchense que nasceu em fins da segunda década do século XVII.

Capitão de Cavalos da Província da Beira, foi Governador da Praça de Juromenha no Alentejo e foi conselheiro de guerra.

Duas vezes almirante da armada portuguesa no Brasil, assinou as capitulações com os holandeses, em 26 de Janeiro de 1654, de que resultou a recuperação de Pernambuco. Esta actividade deu-lhe oportunidade de escrever os dois livros que nos deixou: Nova Lusitânia, História da Guerra Brasílica, que dedicou à Memória do Príncipe D. Teodósio, filho de D. João IV, Lisboa 1675” e Relação da Viagem que fez ao Brasil.
Tendo sido nomeado em 24 de Março de 1669 para conduzir o Rei destituído, D. Afonso VI, à Ilha Terceira, recusou-se a aceitar tal missão, apesar de lhe haverem oferecido o título de Visconde e de governador perpétuo da ilha.

Do mais vivo interesse neste historiógrafo é a sua teoria sobre a escravatura. Não duvida de que o homem nasce isento por lei da natureza e direito das gentes e só “a tirania da fortuna e a crueldade da guerra introduziram o contrário”.

Brito Freira faleceu em 1692.
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Boletim da Junta de Província do Ribatejo, 1937/40
Vida Ribatejana, nº especial e comemorativo dos centenários, 1940
Cultura Portuguesa, Vol. 7, Hernâni Cidade e Carlos Selvagem

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Piropos e coisas mais...

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 8 DE JANEIRO DE 1999)

[Interessante habitação de paredes forradas de azulejos e situada na Avenida do Meu Bairro. Foto JV]

Durante os passeios higiénicos que faço depois do jantar, caminhando tranquilamente pelas ruas da cidade em que resido, cruzo-me com muita gente, incluindo jovens, muitas vezes em grupo, quando a noite começa a cair e em maior número na época estival.

É frequente ouvir algo das suas conversas, já que o tom de voz é elevado, desinibido e esfuziante. Mau sinal era se a juventude não fosse irreverente!

Temos sempre tendência para pôr em paralelo o que agora existe com o que se passava nos nossos tempos. Não era melhor nem pior, era naturalmente diferente.

Havia mais paternalismo, mais “tabus” e muitíssimo menos poder económico.

A família era um todo, gravitando à volta do então chefe de família, o braço que angariava um salário baixo, que o cônjuge, além do desmedido trabalho caseiro (cozinhando, lavando, cosendo, etc.) tinha de administrar.

Mas... andando.

Na minha juventude os rapazes faziam grupos e a sua linguagem, ainda que livre, era comedida. As raparigas, quando muito, juntavam-se duas a duas.

Hoje, os grupos são mistos e o palavreado é muito mais claro e incisivo, fazendo gala na linguagem mais chocante, o sexo feminino (talvez em tentativa de afirmação) com predominância dos fedelhos de catorze, quinze anos, quando não menos.

No meu tempo havia genericamente um certo respeito pelos “grandes”, A sua aproximação motivava o alerta para o mais distraído e no sentido de haver moderação na linguagem. Se saía alguma mais forte, havia logo uma reprimenda feita por qualquer um, em voz alta, funcionando como o pedir desculpa ao venerando passante.

Na altura o contacto familiar era intenso - pais, filhos e muitas vezes avós. Não havia dispersão, havia um todo. Quando se sentava um à mesa, sentavam-se todos e só em circunstâncias raras e muito especiais sem o agora extinto chefe de família.

Se os velhotes não viviam com os filhos e continuavam nas suas residências, a assistência que se lhe dava era a mais intensa possível, sendo a mulher (filha ou nora) a responsável por mais esta árdua tarefa em que os homens colaboravam, segundo as regras, só em situações muito especiais.

Os avós constituíam o símbolo do trabalho, das boas maneiras, da honestidade. Os que ainda tinham alguma vitalidade, ajudavam os filhos na criação dos netos. Hoje, é tudo diferente. As crianças aos três, quatro meses vão para amas e depois para infantários. As mães não as podem ter junto de si já que têm de ir trabalhar fora para ajudar o orçamento familiar. Quando não existe a necessidade monetária, impõe-se a realização pessoal. Depois, dá-se o reverso da medalha, são os filhos que têm a necessidade de ir depositar os pais nos albergues ou lares como agora é costume chamar.

Afinal, estou a afastar-me daquilo a que me tinha proposto abordar.
.
Na minha juventude estava na moda o piropo, galanteio ou madrigal de intenção lisonjeira, chegado à rua e muitas vezes deturpado pelos seus praticantes, chegando mesmo a cair no ridículo e no impropério.

Parece que o piropo teria origem nos grandes salões aristocráticos e que a pouco e pouco foi extravasando, chegando à rua, com as adulterações próprias de quem o maneja. Em consequência, o piropo foi também utilizado para o homossexual com um sentido de “crítica” e ultrapassou limites, caindo na ofensa como já referimos.

[Antiga e interessante habitação (hoje em ruínas) da Avenida do Meu Bairro]

Praticado pelo homem, como na altura não podia deixar de ser, eram os jovens os seus maiores utilizadores, ainda que os melhores piropeiros estivessem no homem feito. Eram das suas bocas que saíam oportunos e pronunciados num bom tom de voz. Estes, muitas vezes obrigavam a um leve sorriso da destinatária. Aceites com naturalidade, por vezes a corte iniciava-se com este sistema, dando origem ao namoro e casamento.

Tudo era motivo para o piropo, mas constituíam alvo preferencial o corpo da mulher e onde se destacavam os olhos, pernas, seios, etc.

Era certo que as moças da minha juventude evitavam passar perto de um grupo de rapazes no sentido de evitar o piropo.

Havia os piropeiros originais e os que se limitavam a reproduzir os que ouviam aos outros.

Dizia-se nesse tempo que mulher séria não tem ouvidos pelo que só em situações muito excepcionais havia uma retaliação. Era frequente, além de um leve sorriso e do baixar do olhar, um rápido “corar”.

O piropo dirigido a determinadas figuras locais era lançado com sentido provocatório visto o lançador saber de antemão ir receber a resposta adequada, por palavras ou acções o que originava muitas vezes e atempadamente “dar à sola” para evitar confusões.

O piropo, pelo menos o de rua, com o decorrer dos tempos foi entrando em desuso e há muito que está praticamente extinto. Pensamos que isso teve lugar devido à cada vez maior aproximação do sexo, cada vez a mulher è mais “homem” e o homem mais “mulher”. Cada vez a mulher desempenha mais funções que na altura eram exclusivas, mesmo por lei, dos homens e o homem já vai fazendo coisas que noutros tempos eram consideradas exclusivas da mulher.

Por outro lado o muro interposto entre o homem e a mulher foi ruindo a pouco e pouco e hoje um simples tijolo os separa.

A lei, procura a igualdade mas a realidade ainda é (até quando?) outra.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

P. Rodrigo de Figueiredo

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 23 DE FEVEREIRO DE 1996)

Filho de um outro Rodrigo de Figueiredo e de Maria, nasceu em Coruche em 1594.

Com catorze anos foi cursar filosofia na Universidade de Évora.

Após o noviciado foi para Roma onde durante alguns anos estudou Teologia.

Em 1618 e após autorização do Geral da Companhia, parte para as terras do “Padroado” Português no Extremo Oriente, mais propriamente para Goa. Aí se mantém três anos e meio, tendo concluído os seus estudos teológicos. Em 1622 parte para terras da China, chegando ao porto de Macau, passando depois, em 1626, para Hang – Tcheou, Ning – Pouo, Honan e Kai – Fong Fou.

O jesuíta português evangelizou durante cerca doze anos os gentios da grande China, sendo vítima da submersão da cidade de Kaifeng em 9 de Outubro de 1642.

O Padre Rodrigo de Figueiredo era dotado de um significativo desprendimento em relação à sua própria pessoa e deixou uma aura de bondade ligada ao seu nome.

Deixou escritas várias obras que ficaram inéditas.
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Boletim da Junta de Província do Ribatejo, 1937/40

Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira

"O Sinólogo coruchense Padre Rodrigo de Figueiredo", Manuel Cadafaz de Matos, in Santarém e os Descobrimentos, 1995

sábado, 16 de janeiro de 2010

A doença

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 31 DE DEZEMBRO DE 1998)


[A Avenida no Meu Bairro. Foto JV, 1992]

Há quarenta, cinquenta anos, período básico a que se reportam estas modestas croniquetas, as reacções perante a doença pouco tinham a ver, como é natural, com o que se passa hoje.

O sistema assistência era praticamente nulo. Só as misericórdias continuavam a sua acção de séculos, destinada aos mais desfavorecidos.

Naqueles tempos, havendo problemas de saúde, só em casos urgentes ou muito graves se recorria ao hospital. De uma maneira geral, chamava-se a casa o médico e cada família tinha o seu, não com o significado que tem hoje o médico de família Era então que o médico verificava se o doente tinha necessidade de ser internado no hospital, o que se fazia em último caso.

O hospital de então, que ficava à entrada do meu bairro, pertencia à Misericórdia, o Hospital de Jesus Cristo, fundado por João Afonso de Santarém que absorveu mais de uma dezena que então existiam na vila de Santarém.

Nessa altura, a enfermagem era feita pelas irmãs da caridade, como lhe ouvia chamar quando lá ia pela mão de minha mãe, visitar familiares e amigos.

As enfermarias, eram enormes, foi uma ideia que me ficou.

Por esses tempos e que eu me lembre, não residia no bairro qualquer clínico e muito menos existia consultório médico – tudo então estava concentrado no centro do velho burgo. A maior parte das vezes o consultório funcionava na própria habitação do médico a que se tinha retirado para o efeito, duas salas, a de espera e a do consultório propriamente dito.

A chamada do clínico era feita através de um familiar ou vizinho do doente que se deslocava à residência ou consultório, solicitando a presença do médico que normalmente não se fazia esperar.

Deslocava-se muitas vezes a pé, passando depois a fazê-lo de automóvel e por estas alturas os médicos possuíam quase todos uma “arrastadeira”, como era conhecido determinado modelo de uma conceituada marca de veículos automóveis.

O médico ia encontrar o doente no leito e ao abeirar-se dele, “tomava-lhe o pulso”, isto é, avaliava qual o ritmo cardíaco procurando verificar se havia febre. Depois, por intermédio do ouvido, auscultava o paciente na tentativa de perceber os ruídos que se produziam no interior do organismo.

Só mais tarde se começou a utilizar o termómetro, quase sempre trazido pelo próprio médico, e o estetoscópio.

Após o exame, o médico era encaminhado ao lavatório de ferro ou de madeira, onde se encontrava a toalha de linho, poucas vezes servida, o sabonete colocado na saboneteira de louça ou de esmalte, quase sempre a estrear e naturalmente o jarro de água a condizer com a saboneteira. Só depois os médicos começaram a pedir algodão e álcool.

A dona da casa ou a pessoa que a substituía, perguntava então se a doença era alguma coisa de maior cuidado, isto enquanto o médico ia passando a receita, indicando como os medicamentos deviam ser tomados e fazendo as considerações que julgava pertinentes.

À saída, o chefe da casa ou quem as suas vezes fizesse, perguntava ao médico quanto lhe devia e efectuava o pagamento.

Lembro-me que na altura ainda se usava com alguma frequência as ventosas, os clisteres, as papas de linhaça, os sacos de água quente e de gelo. Os caldinhos de galinha ainda se usavam como dieta.

As injecções estavam em grande uso pelo que existiam na cidade vários profissionais desta arte a que se recorria quando necessário. Lembro-me de três residindo no meu bairro, sendo um o saudoso Francisco Leonor, conhecido por todos por Sr. Chico enfermeiro. Além de ser um conceituado profissional, era uma excelente pessoa, extremamente afável. Nunca passava por ele que não tivesse uma palavrinha para o miúdo que conhecia quase desde que nasceu.

Durante a minha vivência no bairro, cerca de vinte anos, dei entrada duas vezes no hospital, uma pelo corte da língua e outra num pé. A segunda, de que ainda possuo cicatriz, foi mais complicada, havendo necessidade de uma pequena intervenção cirúrgica. Os factos tiveram lugar quando tinha quatro, cinco anos e foi um amigo da família de nome, Manuel Machado há muito desaparecido que me tirou do colo de minha mãe e que acabou por me levar ao hospital. Apesar dos muitos anos passados, tenho tudo presente na minha memória.

Aqui fica esta Memória, sentida e compreendida pelas gentes do meu bairro e da minha época mas que aos jovens de hoje, parece pertencer à época medieval.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

A fauna

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 25.10.1991)

A zona ocupada pela freguesia da Várzea teve vida-animal na pré-história, como provam os achados de 1919 na Quinta do Marmelal, quando da abertura de um poço (fragmentos de uma grossa defesa de Proboscidiano e um pequeno dente de Rhinoceros, incompleto).

Na Aramanha também quando da abertura de um poço, um dente de Hyotherium e fragmentos de dentes de Rhinoceros.

A caminho da Quinta da Pimenteira foram encontrados outros elementos de menor interesse (1).

Como se vê, os antepassados dos elefantes e dos rinocerontes viveram por aqui.

***

Os ginetos ou gatos-bravos teriam sido abundantes, pelos menos na zona de Vilgateira, a quando da fundação da aldeia, advindo-lhe daí o nome.

Após o desaparecimento de animais de maior porte, a par dos gatos bravos, ainda existem texugos e raras raposas.

Os caçadores podem encontrar coelhos, lebres e perdizes.

A passarada está representada por melros, pardais de trigo, cotovias, verdilhões, poupas, toutinegras, piscos, felosas, carriças, pintassilgos e chapins, entre outros.

De aves noctívagas, aparecem a coruja e o mocho.

Quanto a espécies domésticas, a criação de gado ovino ainda é do gosto destas gentes e os velhos carneiros da Mafarra tiveram fama e foram o orgulho do Doutor Oliveira Feijão (2).

[Craneiros merinos]

Em 1968 a Junta de Freguesia informa da existência de rebanhos de carneiros merinos na Quinta da Mafarra e pertencentes a Carlos Malfeito Monteiro (3).


Também o gado cavalar teve aqui expressão com a coudelaria da Quinta da Granja, ferro Ribeiro Tropa. Foi fundada em 1930 com éguas adquiridas às Casas Cadaval e Sílvio Augusto de Figueiredo, às quais foram depois juntas mais outras com ferros da Comenda, Irmãos Infante da Câmara e António Rodrigues Duarte.

Isento foi vendido para reprodutor à Fonte Boa, Ulino e Ufano distinguidos com menções honrosas na Feira da Golegã de 1858 (4).

Em regime estabular cria-se gado bovino para abate e leiteiro.

Os asininos eram abundantes mas com a abertura de estradas e o aparecimento de maquinaria foram naturalmente desaparecendo, o que também aconteceu às juntas de bois, substituídas pelos tractores.

Continua a criar-se o porco em cativeiro, tanto para consumo próprio como para vender.

Perus, patos galinhas e coelhos fazem parte do açougue familiar. Principalmente em quintas, faisões e pavões.

O cão, velho companheiro do homem, tem aceitação neste povo como guarda ou auxiliar na caça.

A enguia pesca-se ao remolhão nos ribeiros próximos.

Com fundamento no reino animal a toponímia varzeense refere além de Vilgateira, Cabrita, Mocho e Carraceira.

É interessante verificar que entre as aves que nos indicaram como mais vulgares na freguesia, se conta a toutinegra que afinal veio a dar origem a uma dança e cantar local, recolhida e interpretada pelo extinto Rancho Folclórico da Danças e Cantares de Sto. António da Várzea.

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NOTAS

(1)“Alguns dados Paleontológicos dos terrenos dos Bairros de Santarém e do concelho de Rio Maior”, Francisco A. Ferreira Campos, in Boletim da Junta Geral do Distrito de Santarém, 1936, pág. 20
(2)–“Os Gados do Ribatejo”, Dr. Joaquim Pratas, in Boletim da Junta Geral do Distrito de Santarém, 1933, pág. 33
(3)–Ofício nº 12 de 3 de Abril de 1968.
(4)–“Cavalos do Ribatejo”, A. Martins Ferreira, in Vida Ribatejana (Revista), nº Especial de 1962.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

A morte

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 23 DE DEZEMBRO DE 1998)


Como a doença muitas vezes nos leva à morte, resolvemos, e em seguimento da Memória anterior, pôr a memória a funcionar e tentar reproduzir o que então se passava no meu bairro.

Ainda que no fundamental as coisas se repitam, existem diferenças acentuadas de procedimento.

Após exalar o último suspiro, familiares, por vezes auxiliados por vizinhos, procediam ao amortalhar, operação que tinha de ser feita com o maior carinho. Se a morte estava prevista, a mortalha já estava preparada e constituída pelo melhor que o defunto possuía. Tratando-se de pessoa idosa do sexo feminino, era ela própria que a gostava de preparar, enquanto tinha saúde, muitas vezes feita pelas suas mãos. Transmitia o facto e o desejo aos familiares mais próximos, principalmente à filha mais velha, quando existia, a fim de ser satisfeita a sua vontade.

Cumprindo o ritual da higiene, o cadáver era lavado e quando homem, a barba cortada, sendo de seguida vestido, o que deve ser feito ainda com o corpo quente, já que assim é maleável.

A divisão mais espaçosa da casa, muitas vezes a casa de jantar ou casa de fora, era transformada em câmara ardente. Os móveis tapados com panos pretos, o caixão e em casos mais raros, a urna, colocado no meio da casa, ladeado por cadeiras. Sinais do culto católico já que só muito excepcionalmente, e isto para não dizer nunca, se praticava outro.

Já se usavam as velas de cera (estearina) mas a maioria da gente preferia a lamparina de azeite.

Familiares mais distantes, vizinhos e amigos iam chegando, invariavelmente vestidos de preto ou escuro, para apresentar condolências e muitos velarem o defunto até à hora do funeral. Ouvia-se dizer que era a última noite que se podia acompanhar aquele ou aquela que tantas vezes se havia acompanhado noutras circunstâncias.

Alguma vizinha ou familiar mais afastado fazia um caldinho de galinha para matar a fraqueza e um café forte para afastar o sono.

Havia sempre junto ao defunto alguns dos familiares dos mais chegados, vestindo todos de preto. Se de momento não era possível os homens vestirem de negro usavam um fumo preto no casaco mais escuro que tivessem e mesmo na lapela. Se fosse necessário, as mulheres rapidamente tingiam as suas roupas.

Chegava a hora do funeral. Os acompanhantes começavam a chegar, apresentavam os “sentimentos” a quem de direito e formavam grupos junto da porta por onde ia sair o caixão. Entretanto aparecia a carreta, onde o negro e dourado se impunham. Dois homens, vestidos de preto, puxavam-na.

Após a retirada do caixão com as cenas próprias provocadas pelo desgosto por que se estava passando, era amarrado à carreta por intermédio de cintos afivelados e lá seguia a caminho do cemitério dos Capuchos com o padre exercendo a liturgia referente ao acto.

Os homens puxavam a carreta, um de cada lado do varão e quando aparecia uma subida mais acentuada, neste caso na Rua António dos Santos, junto à oficina da então Camionagem Ribatejana, tinha de haver ajuda prestada pelo patrão (vulgo cangalheiro), que seguia na retaguarda, normalmente com uma das mãos já colocada na carreta.

Os familiares mais chegados seguiam logo atrás. As acompanhantes levavam ramos de flores cujo pé se resguardava com uma “prata”.

Ao portão do cemitério, o caixão ou urna era retirado da carreta funerária para seguir na própria do cemitério, a caminho da sepultura. Havia igualmente a possibilidade de ser levado à mão ou ao ombro por camaradas, amigos ou companheiros, o que acontecia algumas vezes.

Na altura era raro a missa de “corpo presente” e não tenho a certeza porquê mas presumo que fosse por uma questão económica.

Junto à sepultura, o padre terminava as exéquias. Depois, havia a possibilidade do despedimento dos familiares e amigos, o que normalmente acontecia. O caixão era colocado no fundo da cova e os coveiros completavam o seu trabalho. Havia sempre algum familiar menos chegado que permanecia no local até à conclusão dos trabalhos após os quais se dirigia aos familiares mais próximos transmitindo a situação.

As viúvas tinham luto para a vida inteira e durante certo tempo que já não posso determinar cobriam a cabeça com uma espécie de mantilha preta.

Havia outras regras de luto pela morte de familiares que igualmente não posso precisar e na qual se englobavam o luto carregado e o aliviado.

Ainda que alguns aspectos se mantenham, a verdade é que existem grandes diferenças com o que se passa hoje, de tal maneira que esta Memória será considerada pelos jovens do meu bairro como sendo factos ocorridos há centenas de anos!

sábado, 9 de janeiro de 2010

Joaquim Maria Pereira Boto

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 10 DE NOVEMBRO DE 1995)


Nasceu em Alhandra a 13 de Março de 1851.

Aos onze anos entra para o seminário de Santarém onde faz os primeiros estudos e depois cursa o liceu da mesma cidade.

Vem a leccionar Matemática e Filosofia no 1º e 2º anos do curso do seminário, frequentando na mesma altura o 5º ano de Teologia.

Aos vinte e quatro anos recebe as ordens de presbítero com dispensa de idade.

Convidado pelo patriarca das Índias, Aires de Ornelas, vai exercer as funções de reitor do Seminário de Rachol mas permanece nessas funções pouco tempo pois tem de regressar ao continente por motivo de saúde.

Vai exercer então para o Seminário de Faro, funções de professor de ciências eclesiásticas, assumindo a vice-reitoria em 1882, substituindo por morte o Padre António José Reis.

Em 1884 foi nomeado cónego honorário da Sé de Faro e examinador pré-sidonal. Um ano depois foi agraciado com o oficialato da Ordem de Sant’Iago e a seguir elevado à categoria de Monsenhor camareiro secreto de Sua Santidade.

A Junta Geral do Distrito de Faro louvou-o pela sua colaboração no posto meteorológico D. Francisco Gomes do Avelar que fundou em 1894, a Câmara Municipal de Faro nomeou-o conservador, por distinção, do Museu Arqueológico e Lapidar Infante D. Henrique, de que tinha sido fundador. A ele se ficou devendo também o glossário das Principais Monumentos do Museu.

Dedicou-se ao estudo da arqueologia do Algarve, realizando explorações nas ruínas romanas do Milreu. Em Faro foi sempre uma figura de grande relevo social.

O seu nome faz parte da toponímia farense.

Pereira Boto veio a ser transferido para a Sé de Lisboa onde foi cónego e capelão da Casa Real, vindo a falecer nesta cidade no dia 23 de Janeiro de 1907.

Foi sócio da Academia das Ciências de Lisboa, da Associação dos Arqueólogos Portugueses, da Real Academia de História de Madrid, do Instituto de Coimbra, do Instituto Arqueológico do Algarve, da associação dos Arquitectos Civis, da Sociedade Martins Sarmento, de Guimarães, da Real Academia de Belas Artes, de Sevilha, da Associação Artística - Arqueológica de Barcelona, do Instituto 19 de Setembro, de Lisboa e da Sociedade Literária Almeida Garrett.

Foi-lhe oferecida em 1888 a mitra de Portalegre, que não veio a ocupar.

Em 1897 ofereceu à Academia de Ciências de Lisboa a cópia de um manuscrito com várias notícias sobre as lutas luso-francesas no Algarve, em 1810 e ao Instituto de França uma memória sobre o israelitismo em Portugal, facto que foi posto em destaque pela imprensa francesa.

Publicou vários trabalhos sobre arqueologia.

Depois da sua morte a Imprensa Nacional editou o Promptuário Analytico dos Carros Nobres da Casa Real Portuguesa e das Carruagens da Gala, obra que veio a ser utilizada para a organização do catálogo do Museu dos Coches, em Lisboa.
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Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira
Algarviana, Subsídios para uma bibliografia do Algarve e dos Autores Algarvios, Mário Lyster Franco Vol. I, A – B, 1982
Lello Universal, Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

A Igreja de Nª Sª da Conceição da Várzea (Matriz)

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 18 DE OUTUBRO DE 1991)


Aqueles que têm seguido o desenvolvimento destes “temas”, já próximo do seu final, estranham de ainda não nos termos referido ao principal templo da freguesia, que afinal também será o seu mais representativo monumento, o que aliás é vulgar acontecer por essas freguesias rurais do País.

Não se trata de um esquecimento, como agora se prova, Já nestas páginas a aflorámos
(1), mas cabe hoje referi-la tentando dizer tudo o que nos foi possível obter, com a convicção de que nem tudo está dito.

***

A igreja que tem por invocação Nª Sª da Conceição da Várzea, matriz da freguesia, situa-se na extremidade nordeste da mesma, num outeiro, pelo que vulgarmente a designam por Igreja do Outeiro.

Larga escadaria de dez lanços, onde têm pousado gerações de noivos, no cimo da qual se erguem duas colunas de alvenaria com trabalhos de argamassa, rematam um muro, dando acesso a amplo adro, todo murado, antigo cemitério e construído com base em materiais da anterior e demolida igreja paroquial.

A passadeira que nos leva ao portal é empedrada toscamente e rematada por três pedras sepulcrais, possuindo a última, em baixo relevo, o brasão de armas dos Galaches (2).

Numa das outras, ainda se nota a palavra Mafarra, pelo que o sepultado deve de estar relacionado com aquela quinta.

[Portal. Foto JV, 2005]
A sua fundação é do século XIX, erguida, segundo se crê, sobre as ruínas da antiquíssima ermida de São Miguel (3), à qual já nos referimos (4).

No século XVI há referências a uma Nª Sª do Outeiro e em 1875 fala-se numa propriedade perto da igreja matriz, intitulada “o facho de São Miguel” (5).

Tal como agora se chama com frequência Igreja do Outeiro, talvez nessa altura a ermida de S. Miguel também fosse conhecida por Nª Sª do Outeiro, devido à sua localização.

Lê-se que a antiga igreja matriz teria sido demolida cerca de 1860 (6).



Em pedra colocada numa das colunas que dão acesso0 ao adro e posta recentemente a descoberto, pode ler-se a seguinte inscrição: - IRMANDADE DO S.S. – 1863.

Parece-nos de admitir esta data como a da construção do adro e fundação da matriz.

É um templo de singelo aspecto arquitectónico, de empena de bico, torre sineira atarracada (7), de secção quadrangular e de três olhais, na qual foi colocado em 1 de Janeiro de 1971 um relógio, oferta do Tenente-Coronel Fonseca Guedes e esposa, naturais desta freguesia (8).

A igreja mede desde o arco cruzeiro até à porta principal, 25,5 m. e de largura, 6,2 m. (9)

[Capitel do portal]

O portal é decorado com duas colunas jónicas que se prolongam em pináculos sobre a pequena arquitrave (7).

De uma só nave, coberta por tecto de madeira de três panos; nas paredes corre um silhar de azulejos do tipo padrão do século XVII, de tipologia invulgar, desenvolvendo um motivo de maçaroca em pintura verde, azul e amarelo, com figurinhas quase profanas de anjos, num conjunto de belo efeito decorativo (7).

Sobre a porta principal está o coro assente sobre duas colunas de cantaria lavrada com capitéis da mesma ordem (9).

A capela-mor tem cerca de 25 m2 e uma campa rasa com a seguinte inscrição:- ESTA SEPVLVRA QVEEIS HE DO PADRE IOM LVIS ELE PEDE A QVEM PARA ELA OLHAR HUM PADRE NOSSO O QVEIRA AIVDAR 1646 (9).

Esta campa parece ter vindo da antiga capela de S. Miguel, uma vez que apresenta uma data muito anterior à indicada para a edificação da igreja.

O trono e o retábulo são detalha dourada.

[Altar. Foto JV, 2008]

O corpo da igreja possui mais quatro altares laterais, sendo um deles do lado da epístola, dedicado a Nª Sª da Graça. Esta imagem é de pedra e denota grande antiguidade, julgando que é oriunda da antiga igreja matriz. Gustavo de Matos Sequeira, considera-a quinhentista (10). Tem de altura, 0,98 m.

Na sacristia um painel sobre tela de autor desconhecido (Se. XVII), muito deteriorado, figurando Cristo crucificado e rodeado de religiosos jesuítas. (7)

No presbitério admira-se um raro tapete de Arraiolos do início do séc. XVIII (7), medindo 4,33 X 4,10 m.

Pinho Leal informa no seu conhecido dicionário que é um templo muito bem conservado, asseado e com todos os paramentos e alfaias necessárias para o culto divino, sendo uma das freguesias mais religiosas do distrito de Santarém.

Sabemos que em 1899 o tecto ameaçava ruína e constituía um verdadeiro perigo para os fiéis que concorriam aos ofícios divinos. Foi pedido um subsídio ao cofre da “Bulla da Santa Cruzada” e proposto obter o restante por subscrição entre as pessoas mais abastadas e piedosas. (11)

Inscrito na respectiva matriz predial sob o nº 882 tem uma área coberta de 237 m2 e descoberta de 1132. A sacristia tem 17,2 m2 e a torre sineira, 11,70.


O que acabámos de escrever sobre a matriz varzeense, há muito que estava feito, muito antes das obras de restauro que beneficiou por volta de 1987. Daí o seu desajustamento à situação actual, ainda que, no decorrer dos trabalhos a ela nos abeirássemos no intuito da avaliarmos as alterações efectuadas.

Depois da conclusão, não tivemos oportunidade, por variadíssimos motivos, de a visitar, já que, quando o fizemos, encontrava-se fechada.

Não conhecemos por isso bem o assunto.

Dizem-nos que a obra se efectuou por estar a ruir o tecto e quando se lhe tocou, outros sectores se sentiram agravando-se a situação.

Exteriormente, a mudança da configuração da fachada não a prejudicou, já que manteve inalterável o portal, conjunto de valor artístico.

Substituíram a simples janela que iluminava o templo por um nicho (dizem que oriundo do seu interior, com uma imagem.

Parece-nos que um óculo circular ou elíptico, protegido por grade de ferro forjado, não destoaria, pelo contrário, e além de iluminar, arejava o templo.

A área da igreja foi aumentada, não sabemos se por vontade própria, se por a parede lateral ameaçar ruir. Igualmente desconhecemos o que aconteceu ao silhar de azulejos a que oportunamente nos referimos. Se foi destruído, lamentamos profundamente o facto, já que constituía um dos motivos artísticos de maior valor da igreja.

***
Aqui contraíram casamento os meus pai há sessenta e quatro anos. Aqui recebi o sacramento do baptismo há cinquenta e três.

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NOTAS

(1)– “Porquê Freguesia da Várzea”, nº de 22.03.1991.
(2) – Trata-se da sepultura do avô de D. Josefina Sacoto Galache, madrinha de D. Isabel Rodrigues Casqueiro que nos prestou a informação.
(3) - Boletim da Junta de Província do Ribatejo, 1937/40.
(4) “As dez capelas que possuía nos começos do Séc. XIX”, in Correio do Ribatejo de 16.08.1991.
(5) – Acta da Sessão de 30.04.1875, da Junta de Paróquia.
(6) – Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.
(7) - Tesouros Artísticos de Portugal, Selecções do Reader`s Digest, 1976.
(8) – Acta da Sessão de 21.12.1970, da Junta de Freguesia.
(9) – Portugal Antigo e Moderno, A. S. B. Pinho Leal.
(10) – Inventário Artístico de Portugal, Lisboa, 1949, Vol. III, pág. 96.
(11) – Acta da Sessão de 30.04.1899, da Junta de Paróquia.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Carlos Relvas

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 3 DE NOVEMBRO DE 1995)



Hoje iremos lembrar um goleganense.

Homem plurifacetado, de seu nome completo Carlos Augusto Mascarenhas Relvas de Campos, nasceu na Golegã em 1839, sendo de José Farinha Relvas de Campos, um opulento lavrador da região.

Casando com D. Margarida de Azevedo e Vasconcelos aumentou ainda mais os seus meios de fortuna.

Fidalgo da Casa Real, Comendador da Ordem de Nª Sª da Conceição, além de grande lavrador foi cavaleiro tauromáquico amador, desportista, excepcional entusiasta pela arte de fotografar e até criador de um novo modelo de salva vidas.

Como presidente da vereação e como procurador à Junta Geral do Distrito, empreendeu importantes melhoramentos na sua terra natal.

Recebia em sua casa, com a maior franqueza, todas as pessoas notáveis que passassem pela Golegã, incluindo, por mais de uma vez, a Família Real.

Recusou sempre as recompensas pelos serviços, não aceitando a candidatura que lhe ofereceram nas eleições para deputados, em 1842.

Títulos nobiliárquicos e outras distinções do tipo e proposta pelo governo, nunca tiveram o seu consentimento.

A nível agrícola, introduziu no nosso país métodos usados nos países mais evoluídos, com resultados positivos.

Exerceu sempre a tauromaquia sem qualquer retribuição monetária, colaborando em corridas de beneficência, sendo a última em 1893, a favor das vítimas de um ciclone que atingiu os Açores.

À sua custa, mandou construir na Golegã, uma praça de touros.

Como desportista, salientou-se na equitação e como não podia deixar de ser, no manejo do pau, da pistola, da carabina e do florete.

Foi contudo à fotografia que dedicou a maior parte do seu tempo e sabedoria.

A fotografia, acabada de chegar, estava em pleno desenvolvimento. Acompanhando os sucessos tecnológicos, Carlos Relvas desde cedo pôde mostrar as suas criações por esse mundo fora, recebendo recompensas e honrarias que acicataram ainda mais a procura da perfeição.

Montou, junto da sua vivenda, um “atelier” que foi considerado o melhor do país. Alcançou medalhas em “certames” em que se apresentou, como em Paris (1870 e 1876), Viena de Áustria e Madrid (1873), Filadélfia (1876) e em Amesterdão (1876) onde obteve o primeiro prémio.

O artista teve a sorte de no decorrer da sua existência, ver a sua obra consagrada.

Carlos Relvas que marcou o seu lugar entre as personagens mais simpáticas e elegantes do País, faleceu na Golegã com cinquenta e seis anos, vítima de desastre quando passeava a cavalo.

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Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira

Boletim da Junta de Província do Ribatejo, 1937/40

“A Vila da Golegã e seus termos”, A.H. Barata, in Correio do Ribatejo de 11 de Março de 1977
Carlos Relvas, fotógrafo, A.P. Vicente

domingo, 3 de janeiro de 2010

Fernão Teles de Meneses

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 27 DE OUTUBRO DE 1995)


Há quem o dê como nascido em Santarém por volta de 1600. Se não nasceu, lá viveu a maior parte da sua vida, lá faleceu e ficou sepultado.

O 8º Senhor de Unhão, de Gestaçô, da Honra de Meinedo e de outros vínculos, foi o 1º Conde de Unhão, título criado por Filipe IV, em carta datada de 7 de Junho de 1630 e de Madrid.

Era filho de Rui Teles de Meneses e de sua mulher, D. Mariana da Silveira.

Casou com D. Francisca de Távora e Castro em 1630, filha de D. Martim Afonso de Castro que foi Vice-rei da Índia, e de sua mulher, D. Margarida de Tovar, dama de honor da rainha D. Isabel de Bourbon, mulher de Filipe IV.

A 1ª Condessa de Unhão, já viúva, veio a ser camareira-mor da rainha D. Maria Francisca de Sabóia.

O Conde Unhão levantou em Santarém o grito da revolta contra a denominação filipina. No dia de 5 de Dezembro dirige-se aos Paços do Concelho, então na Praça Velha, actual Praça Visconde Serra do Pilar e de lá sai com o guião, acompanhado pelos fidalgos que estavam na vila e povo, aclama D. João, rei de Portugal, com incríveis júbilos de alegria e contentamento de todos, com repiques e luminárias e mais demonstrações de satisfação.

Esta acção do considerado Senhor da então vila de Santarém, marcou a sua imagem perante as gerações vindouras.

Quando faleceu, em 1665, o rei D. João IV, verteu lágrimas pelo passamento do seu amigo.

O Padre António Vieira, que era afilhado de baptismo do Conde de Unhão, fez o seu elogio no sermão das exéquias na vila de Santarém, que teve lugar no Colégio dos Padres da Companhia de Jesus, hoje sede Episcopal.

Fernão Teles de Meneses (ou da Silveira), foi sepultado junto dos túmulos de seus avós, no Convento das Donas, hoje P S P , onde também ficou seu sogro.

A lápide comemorativa da sepultura encontra-se no Museu Arqueológico de S. João de Alporão.

Há muito que nada existe do Palácio dos Condes de Unhão. Situava onde está hoje o quartel dos Bombeiros Voluntários, com frente para o antigo campo fora de vila e para a rua que ainda conheci pela Rua (ou travessa) do Conde. Não foi esta que veio a ter o seu nome, mas sim uma artéria do Bairro dos Combatentes, isto por volta da década de quarenta.
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Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira
Fastos de Santarém, Aclamações Reais, José Henriques Barata, Coimbra, 1947
Cosme de Médicis e o Ribatejo, José Henriques Barata, Coimbra, 1947
Santarém no Tempo, Virgílio Arruda,

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

O Professor Oliveira Feijão, médico e lavrador


(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 11 de OUUBRO DE 1991)
Voltemos hoje a esta variante dos TEMAS, as FIGURAS.

Se algumas que já referimos são pouco conhecidas e outras, nem por isso, com a de hoje já assim não acontece pois trata-se de uma personalidade bem marcante da sua época.

Também não é varzeense pelo nascimento pois viu a luz do dia em Almada a 24 de Novembro de 1850.

Faleceu contudo nesta freguesia na sua Quinta da Mafarra a 11 de Novembro de 1918 e onde passou os últimos anos da sua vida.

Há pelo menos oitenta anos a sua fotografia encontrava-se na escola primária de Vilgateira. Qualquer manifestação de interesse colectivo da freguesia tinha de contar com a presença do SENHOR DA MAFARRA, como lhe chamou o Dr. Virgílio Arruda.

Temos conhecimento, por exemplo, que a pequena mas significativa festa do “Dia da Árvore” de 1914 (?) em que além de recitação de várias quadras alusivas ao dia se plantou a amoreira de Vilgateira, já aqui referida, contou com a sua presença.

Lembramo-nos que há trinta anos e a nossa solicitação, qualquer homem “maduro” da freguesia o descrevia, lembrando o seu porte.

É incontestável a ligação à freguesia e muito fácil organizar uma “biografia” desta figura, já que a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira o não podia deixar de referir e o Dr. Virgílio Arruda, baseado no In Memoriam, do Dr. Francisco Tavares Proença, o lembrou nas páginas deste jornal (1) na passagem do 60º aniversário do seu falecimento e isto, convém dizê-lo, pela ajuda dada por outra figura varzeense, já aqui referida, o Tenente-Coronel Fonseca Guedes.

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[Portão da Quinta da Mafarra. Des. de JV]
O Doutor Francisco Augusto de Oliveira Feijão, de seu nome completo, concluiu o curso de medicina em 22 de Julho de 1873. Foi nomeado para o banco do Hospital de S. José em 3 de Fevereiro de 1874 e era director de enfermaria em 3.12.1885.

Hábil cirurgião, sabia intervir nas várias situações patológicas. Não admira que em 1880 já regesse a cadeira de Obstetrícia. Promovido por Decreto de 29.09.1881 a Lente, foi-lhe destinada a cadeira de Clínica-cirúrgica.

Foi o primeiro cirurgião que em Portugal extirpou pela ovariotomia um tumor do ovário e fez a operação da tiroidectonia (intervenção cirúrgica sobre a glândula tiróide).

Médico da Real Câmara, acompanhou nessa qualidade a Rainha D. Amélia e o Rei D. Carlos na viagem que os soberanos fizeram aos Açores.

Foi também médico assistente de muito diplomatas.

Após a implantação da República, deixou de exercer a medicina, dedicando-se exclusivamente ao ensino e à sua actividade de lavrador. (2)

Era grande a paixão que o Professor Oliveira Feijão possuía pela agricultura, a que se dedicou com entusiasmo.

Em 1888 entra como sócio para a associação Central da Agricultura Portuguesa. Em 20 de Março de 1902 é escolhido para o cargo de Presidente. Procura que através da agricultura que se arrancasse a província ao marasmo em que jazia.

O ilustre clínico empenhou-se na instrução e educação da gente dos campos pois estava convencido que sem pessoas aptas para as novas tecnologias não seria possível divulgar e pôr em prática os novos processos de trabalho agrícola.

“Quando se acumulam inventos que tendem a abreviar o tempo e o espaço, mal vai quem não acompanha o progredir da sua época” – são palavras do sapiente médico o mostram como via i futuro da Humanidade.

Sugere a fundação de adegas sociais e a organização de cooperativas de produção e de venda que iriam ter efeitos positivos na comercialização.

Como deputado independente, defendeu a causa dos agricultores.

Participou em vários congressos, entre eles ode olivicultura e indústria do azeite, em 1905, ao qual apresentou uma comunicação intitulada, A Época da Maturação e Apanha da Azeitona, Escolha e Lavagem do Fruto.

Já anteriormente, em 1900, tinha tomado parte, como representante do sindicato agrícola do distrito de Santarém, no congresso vinícola promovido pela Associação de Agricultura.

Também se interessou muito pela cultura dos cereais e pode dizer-se que da sua quinta fez um laboratório agrário.

Abandonou por motivos de saúde a presidência da Associação Central de Agricultores em 17 de Agosto de 1914.

Na pecuária tinha predilecção especial pelos ovinos e a fama dos carneiros da Mafarra ultrapassou as fronteiras nacionais.

Além de artigos dispersos por vários jornais, publicou: Organismo e Traumatismo, Lisboa, 1813, Patogenia das Metástases, Lisboa, 1875, Feridas e Pensos, Lisboa, 1877 e “Lições de clínica cirúrgica feitas no anfiteatro anexo às enfermarias de clínicas escolares do Hospital Real de S. José, Lisboa, 1883.

Além de conhecer a fundo o Latim, era poliglota, tendo deixado algumas traduções. Discursava em Francês com a mesmo facilidade com que o fazia na língua mãe.

Também as musas não lhe foram alheias na sua mocidade, ainda que os poemas não tivessem saído de familiares e amigos.

Frequentou com muita assiduidade os grandes salões aristocráticos e diplomáticos, que abandonou após o regicídio.

Bom cavaleiro, montando com grande elegâncias, fazia equitação todas as manhãs, no que era acompanhado pela esposa, exímia amazona.

Além de caçador afamado, era amador de touradas não faltando às ferras promovidas pelos lavradores das redondezas.

[Ao fundo, a Quinta da Mafarra, Foto de JV]

O Doutor Oliveira Feijão nunca recusou a quantos dele se abeiravam, a sua abalizada opinião sobre as doenças que os apoquentavam, não recebendo contudo qualquer retribuição monetária. Muitos, eram os seus próprios trabalhadores e seus familiares.

A título de curiosidade, indicamos o número de receitas despachadas na Farmácia Mendes, em Vilgateira, assinadas pelo sapiente médico.

Em 1909, 12; 1910, 11; 1912, 26; 1913, 28; 1914, 23; 1915, 62; 1916, 23 e 1918, 8.

Aqui fica algo do que compilámos sobre esta impressionante figura, ainda na lembrança dos mais idosos varzeenses que relatam acontecimentos da época.

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NOTAS
(1)“O Senhor da Mafarra – Oliveira Feijão – e a sua exemplaridade na Medicina e na Lavoura – o médico que tentou revolucionar a agricultura”, Virgílio Arruda, in Correio do Ribatejo de 30 de Novembro de 1978.
(2)Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.