domingo, 24 de janeiro de 2010

O "Pão por Deus"

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 31 DE OUTUBRO DE 1991)


Pedir o Pão por Deus, os Santinhos ou Santos, ou os Bolinhos, vem a significar a mesma coisa; a sua aplicação varia de zona para zona, de pessoa para pessoa.

Na região do Ribatejo e na Estremadura, é mais vulgar o uso da primeira designação, daí a nossa utilização como título de mais um Tema Varzeense.

Este velho costume relaciona-se com o culto dos mortos e espalha-se por todo o país mas com diferenças acentuadas de zona para zona, de região para região.

Desde os tempos neolíticos que aparecem manifestações de culto dos mortos sobre a forma de vestígios de consagração de alimentos sobre os locais de enterramento.

[Saco de retalhos que foi substituído pelo de plástico]

Pedir o “Pão por Deus”, cantar “As Janeiras” e “Os Reis”, entre outras, são épocas de peditórios cerimoniais, enquanto a Páscoa e o Natal, são de ofertas.

A castanha que é o produto próprio da estação e que teve grande importância na economia alimentar de outros tempos no Norte do País, e os bolos próprios da ocasião, tinham e ainda têm grande significado em quase todas as regiões.

A razão das esmolas que se pedem nesta festividade cívica, deve procurar-se na natureza especial das comemorações a que respeitam as datas em que se verificam.

Em muitos lugares acredita-se que uma vez por anos, no dia consagrado aos mortos, as almas dos defuntos vêm à terra visitar os lugares que em vida habitaram. Fazem-se por isso bolos destinados às almas, peditórios e esmolas desses bolos e em alguns locais chegam mesmo a pôr a mesa para os defuntos.

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Depois destas notas de carácter geral obtidas no excelente trabalho de Ernesto Veiga de Oliveira, intitulado ”Festividades Cíclicas em Portugal”, e que nos ajudam a compreender melhor o tema, iremos referir o que se passa a nível da freguesia da Várzea.


Ainda que não tenha aspectos bem marcantes, a verdade é que também aqui se festeja o Dia-de-Todos os Santos. Assim, nesse dia, em caso todas as casas se comem castanhas, nozes, passas de figo, de uva ou de ameixa, amêndoas, etc. Era também uso a oferta entre vizinhos e amigos daqueles produtos que cada qual colhia. Por outro lado e talvez o mais significativo, realizava-se o peditório do “Pão por Deus”.

Logo pela manhã as crianças começavam a pedir aos pais para as deixar ir ao “Pão por Deus”.

Faziam-no com grande entusiasmo e organizavam-se em grupos que percorriam as aldeias mais próximas, batendo de porta em porta.

Notar que nos grupos encontravam-se crianças de todos os extractos sociais.

Lá iam de saco, ainda não plástico, às costas, começando, para se desinibirem, pelos vizinhos com quem estavam mais familiarizados. Nalguns casos eram os pais os primeiros dadores.

Os adultos gostavam sempre de saber o que levavam, alguns diziam que não tinham nada para lhes dar mas acabavam sempre por arranjar alguma coisa.

O mais vulgar que davam, traduzia-se como é natural, nas suas produções e assim apareciam nozes, amêndoas, passas de figo, uva ou ameixa, romãs, marmelos e maçãs, quando não bolos caseiros feitos para o efeito. As castanhas eram nessa altura mais difíceis de dar já que as tinham de comprar.

Com o andar dos tempos, além das castanhas começaram a aparecer os rebuçados, os bolos empacotados e mesmo o dinheiro.

Quem dava, tinha a preocupação de fazer uma distribuição equitativa e se alguma diferença havia era em relação aos mais pequenos. Por outro lado, tinha de contar com os que ainda estavam para vir pois pretendiam contemplar todos.

[As meninas (*) que pediram "o pão por Deus." Foto JV]


A última vez que sentimos o “Pedir o Pão por Deus” foi há cerca de seis anos, quando assistimos ao regresso a casa de três pequeninas, minhas familiares que traziam os sacos cheios das “iguarias” já referidas. Vinham cansadas mas radiantes. Senti o pulsar empolgante dos seus coraçõezitos. Pedi e deram-me explicação da tarefa que nessa tarde de 1 de Novembro se propuseram realizar.

Mais uma vez a tradição tinha sido cumprida.
E continua.

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* A do meio é hoje mãe de duas meninas, a mais nova, Zita, badalado do blogue Alcoutim Livre, a mais velhinha é a mãe da Carminho que originou a última entrada da rubrica "da barriguinha da mamã" no Alcoutim Livre. Da mais novinha, espero que me dê o Pedro, que será o meu 1º terceiro-sobrinho!