quarta-feira, 3 de junho de 2009

Tradições Varzeenses - A serração da velha

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 15 DE MARÇO DE 1991)

O desaparecimento da serração da velha é posterior ao das pulhas, talvez por ser dedicado aos “velhotes” e consequentemente com menor poder de oposição.

“Folguedo popular ainda em uso em muitas aldeias e que consiste em fingir que se serra uma velha a meio da Quaresma”. (2)

“Costumeira que ainda há nalgumas aldeias, de irem grupos populares à porta de mulheres idosas, em meio da Quaresma e fingirem que as serram, folgando e motejando-as”. (3)

“Celebração que em Portugal tem lugar a meio da Quaresma, interrompendo nesse dia com a sua licenciosidade, o regime das severas abstenções do período (...) consiste frequentemente numa assuada à porta das mulheres idosas, incluindo geralmente a serração de um cortiço. É susceptível de interpretações míticas e pode remontar ao período Romano”. (4)

Estas definições não podiam deixar de ser sucintas, o que não nos permite ficar com uma ideia mais concreta deste folguedo que também foi muito do agrado dos varzeenses.

Tentando ser mais objectivo, descreveremos uma SERRAÇÃO a que tivemos o gosto de assistir e que perdura na nossa memória.

Estávamos a meio da Quaresma, época exclusiva para a sua prática.

Decorria o final da década de cinquenta. Foi uma das primeiras vezes que estivemos na nossa aldeia, meio que só conhecíamos pelas referências que ouvíamos a nossos pais.

Rondava a meia-noite. Nessa altura, a tal hora, poucos estavam de pé – mão havia iluminação pública e muito menos TV. O azeite nas velhas candeias e o petróleo revolucionário em lanternas, candeeiros e meios mais evoluídos, onde pontificava o “petromax”, dava-nos a luz possível.

Estávamos sentados nas escadas da capela de Sto. António. A rapaziada que se juntou, dialogou e traçou o projecto.

Ainda que me procurassem enquadrar, sentia-me deslocado mas aceitei com gosto o convite que me fizeram para entrar no plano do qual ia tirando uma ideia que me espicaçava a curiosidade.

Á existia nas mãos do “chefe”um pedaço de cortiça e um sarrafo dentado como uma serra. As “vítimas” foram antecipadamente escolhidas. A selecção fez-se em função da idade e do temperamento – quanto mais irritadiços melhor. Não havia distinção de sexos.

Lá fomos. Descemos para a Fonte e subimos à Aramanha. A minha acção limitava-se a cumprir as obrigações. Ao aproximarmo-nos da casa da vítima, caminhava-se com cuidado redobrado, a fim de não se dar pela presença do grupo. Escolhido o local adequado – porta ou janela – e só nós não conhecíamos os cantos à casa, o “chefe” avançou e com duas ou três pancadas secas e apressadas, acordou e despertou o velhote.


[Casario típico da Aramanha, já desaparecido. Des. de JV]

Sem deixar que saísse a pergunta normal de – Quem está lá?, o folgazão com a voz demonstrando inquietação, informa ardilosamente da recepção de um telefonema proveniente da filha, algures para os lados do Cartaxo. Podia-se ter optado por outro motivo, como por exemplo, dizendo que o burro estava solto.

A avançada idade, o sono interrompido, a hora, o espírito de amor, solidariedade ou de responsabilidade e o inesperado da notícia provocava normalmente excitação e o levantar-se. Era o momento azado para entrar o “serrador” que, com a cortiça e o sarrafo habilmente manejados, provocava um barulho forte e característico, entoando ao mesmo tempo, dolentemente: - JÁ MORREU A MINHA AVÓ, QUE NÃO DÁ PONTO SEM NÓ! – os restantes comparsas faziam de ruidosas carpideiras. Só então o velhote se lembrava estar perante a “serração” e irritado, descompunha os serradores, uma vez que o serrar pressagiava a sua morte no decorrer do ano.

A grandeza dos vitupérios era a recompensa dos serradores.

Entre as vítimas desse ano, lembro o Sr. Manuel Bento, conhecido pelo Ciclá, figura típica da aldeia. Combatente na Grande Guerra 1914/18 e que sofreu o efeitos dos gases, contava as voltas que tinha dado num estilo inconfundível, onde aparecia com frequência, na formação das frases, a expressão “cá que ciclá”, penso que devido à sua gaguez e numa tentativa de desbloquear a dificuldade que tinha.

O estratagema para fazer levantar o Sr. Manuel Bento, foi o do burro solto e fomos obsequiados , como era seu hábito, pelo postigo da porta, com uma “penicada”.

Ainda não era um homem velho, mas o seu temperamento deu-lhe direito a ser serrado muitos anos.

Aqui tendes t6radições varzeenses já perdidas no tempo e que alguns recordarão com saudade.

________________________________

NOTAS

(2) – Dicionário Enciclopédico Lello Universal.
(3) – Grande Dicionário da Língua Portuguesa (Dicionário de Morais).
(4) – Focus – Enciclopédia Internacional, Vol. IV, Livraria Sá da Costa, Lisboa.