(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 19 DE JANEIRO DE 2001)
Intitulei A ESCOLA, a IV MEMÓRIA DO MEU BAIRRO, publicada no “Correio” de 18 de Dezembro de 1992. Como o tempo passa, parece que foi ontem!
Ainda que assim intitulada, baseou-se fundamentalmente na figura do meu professor, Agnelo da Silva Lázaro, que nunca esquecerei.
Ao olhar para o material que as crianças hoje usam na escola primária, fez-me lembrar o que se passava no meu tempo e na escola do meu bairro.
O uso diário da bata branca era obrigatório, incluindo os professores e só abolido após o 25 de Abril de 1974.
[Turma da 4ª classe (1948/49) com o Prof. Agnelo da Silva Lázaro]
Lembro-me que número significativo de alunos iam para a escola descalços, chovesse ou fizesse sol e alguns dos que se apresentavam calçados, quando chegavam a casa, descalçavam os sapatos para não os estragar, indo brincar de pé ao léu, mesmo jogando a bola.
Por pouco usados, por vezes não se chegavam a estragar mas... deixavam de servir, o que também não importava muito pois iam calçar o irmão mais novo.
As carteiras comportavam um banco corrido para dois alunos a que nós chamávamos “passás” (parceiros na nossa linguagem). Dizíamos: - o meu passá é fulano. O meu era o Lúcio, infelizmente já desaparecido a alguns anos. Além disso, os tampos levantavam-se para colocar numa divisão, a pasta, mala ou sacola.
[Ardósia (pedra) e pena]
Na parte mais elevada (horizontal), já que o tampo era levemente inclinado, situava-se ao centro o tinteiro de porcelana branco e de cada um dos lados, uma reentrância na madeira para colocar caneta, lápis e pena.
As carteiras colocadas às filas, tinham à sua frente o quadro preto, de ardósia, que se alcançava subindo para um estrado no qual se situava a secretária e cadeira do professor, de gavetas e dimensões avantajadas. No outro canto, a lareira que nunca funcionou no meu tempo e certamente por muitos anos, por falta de lenha. Era só para ser bonito pois não havia verba para o combustível e em salas grandes se não se ia bem agasalhado, tiritava-se de frio.
[Livro de leitura da 1ª classe]
Na parede do quadro, um crucifixo, a fotografia do Presidente da República, na altura General Carmona e no lado esquerdo a do Presidente do Conselho de Ministros, Professor Doutor Oliveira Salazar.
Perto, o Mapa de Portugal Continental, com a figura do seu autor ou coordenador que ainda estou a ver com o seu bigode e que se a memória não me atraiçoa, se chamava Ladeiro ou Landeiro e no qual tínhamos de indicar sem hesitação os rios, com seus afluentes, as serras dentro dos seus sistemas, as capitais de província e de distrito, os cabos, as penínsulas, as linhas férreas, eu sei lá que mais!
Além deste ainda havia o mapa do Portugal Colonial e das Ilhas Adjacentes do arquipélago da Madeira e dos Açores e ai de quem não soubesse localizar as Desertas!
No Império Colonial lá estavam Cabo Verde, Guiné, S.Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, o chamado Estado Português da Índia, com Goa, Damão e Diu, Macau, com as ilhas de Taipa e Coloane, Timor com o ilhéu de Ataúro e ainda o Forte de S. João Baptista de Ajudá, na costa ocidental da África. E sobre tudo isto tínhamos de saber a sua localização, capitais, produções, etc. etc.
[Livro de leitura da 3ª classe]
Num armário envidraçado guardavam-se um metro de madeira, penso que uma balança de pratos com pesos e a caixa dos sólidos, igualmente de madeira e da qual constavam : cubo, cilindro, prisma, pirâmide, cone e esfera. Além disso era lá que o professor guardava o livro das frequências, a caixa do giz (de cor eram poucos paus e quando o professor os utilizava era dia de alegria para os miúdos) a garrafa da tinta de escrever e os nossos cadernos diários que o professor fazia cortando ao meio as folhas de papel de vinte e cinco linhas, as quadriculadas e as lisas que eram colocadas na proporção da sua utilização. Com uma pequena máquina, fazia-lhe dois furos por onde passava um cordão que as atava em laço. A primeira folha funcionava como capa e identificava a escola, a classe e o aluno. Penso que o caderno era levado para casa no fim do ano mas não tenho a certeza.
O caderno diário, que não era utilizado todos os dias, deduzo que servia para justificar os conhecimentos do aluno. Nele se faziam ditados, redacções, contas, resolução de problemas de aritmética e desenhos à mão livre, principalmente objectos de linhas curvas: - jarras, potes e bilhas (a asa era um flagelo mesmo para os que tinham alguma habilidade). Por vezes apagava-se tanto que se rompia o papel! Para quem nasceu sem um mínimo de habilidade, era um verdadeiro martírio.
O transporte do material escolar fazia-se em malas de cartão, de faces rectangulares, reforçada nos cantos e na aba por chapas, com uma correia de coro para pôr a tiracolo (para as meninas, a mesma mala tinha uma pega), em sacolas, de serapilheira, igualmente com uma fita para pôr a tiracolo e que tinha a particularidade de ter na face da aba, um desenho estampado de cores berrantes que atraía as crianças mas que durava pouco tempo. Eram compradas no comércio do bairro enquanto as de cartão se adquiriram no comércio da especialidade. Muito excepcionalmente existia uma pasta de coro, só utilizada por alguns professores. Lembro-me contudo que um colega meu a tinha, o Carlos Alberto, que era filho de um dos proprietários de uma conhecida livraria da cidade e que faleceu bem jovem, num acidente de viação.
Só me lembro de ter uma mala de cartão pois quando a aba de fechar, se cortou, pelo uso, visto não haver dobradiça, mas sim um vinco, foi cosida e durou até completar a primária.
Quando era preciso correr, por gosto ou necessidade, a mala, colocada a tiracolo e segura pela mão com o auxílio do braço, fazia grande chocalhada provocada pela agitação de livros, cadernos, pedra, caneta, aparos, lápis, lápis de cor, penas, apara lápis e borrachas, isto indicando o conjunto que poucos tinham.
["Pires de Lima", o meu livro de leitura da 4ª classe]
O primeiro exame oficial a que me opus, foi o da então chamada 3ª classe e que já realizei na escola do meu bairro, que frequentava. Lembro-me que foi numa sala do rés-do-chão, vesti um calção castanho e uma blusa creme de que estou a sentir nas minhas mãos o seu tecido e feita por um excelente alfaiate da cidade, que ofereceu o tecido e o seu valioso trabalho. Da prova, só me lembro do ambiente da sala, talvez pela sua decoração e do sítio onde me sentei que ainda hoje era capaz de identificar, do conteúdo, nada ficou, só sei que fui aprovado. Já lá vão pelo menos cinquenta e três anos, é muito tempo!
Quanto a livros e reportando-me à 4ª classe, muito trabalhosa até porque foi simultânea com o exame de admissão ao liceu, lembro-me dos seguintes:- livro de leitura que no meu caso era o chamado “Pires de Lima”, que ainda possuo. Na admissão ao liceu o conhecido professor de Português, Dr. Gonçalves Neto, mandou-me ler a lição Vasco da Gama e perguntou-me se eu sabia o que eram calafates.
[A minha História de Portugal, de Tomás de Barros que faz parte dos meus livrecos]
A História de Portugal era de Tomás de Barros, a Geografia da Colecção Escolar “Progredior”, a Aritmética, Ciências e Gramática, da Escolar Educação, de António Figueirinhas, tudo do Porto. Possuo todos estes exemplares.
Os chocolates que as crianças comiam na altura, eram muito poucos. Havia umas pequeninas tabletes forradas a papel prateado de uma só cor e que tinha colado um pequeno boneco que ocupava todo o seu cumprimento. As figuras eram muito variadas. A tablete já era pequena aos nossos olhos mas ainda era menor quando se abria. Apesar da qualidade deixar muito a desejar, proporcionava-nos comer (era duro) uma guloseima de que gostávamos, tirávamos a prata com muito jeitinho para não se partir, passávamos- -lhe a unha para a alisar e púnhamo -la dentro dos livros, o mesmo fazendo com o bonequinhos, que eram um encanto. Era assim a vida de então, com uma pequena coisa tínhamos três satisfações! As tabletes custavam três tostões, se a memória não me atraiçoa.
Para os dois primeiros anos, havia sempre uma Tabuada.
Havia um caderno para os trabalhos de casa, a que nunca faltava uma cópia, contas, reduções, problemas para resolver, etc., etc.
Na primeira classe havia caderno de duas linhas para educar a caligrafia.
Não podia faltar a pedra, noutras regiões designada por ardósia ou lousa, como a designavam alguns dos professores originários, principalmente dos distritos da Guarda, Castelo Branco e Viseu. Alguns regressaram ao seu torrão natal, outros por cá ficaram.
A pedra era constituída por uma lâmina de xisto escura, uma rocha sedimentar igual à existente no quadro preto, só muitíssimo mais fina. Recebia à sua volta, de formato rectangular, um caixilho de madeira que a protegia e que com o uso se desmanchava. Havia-as de tamanhos diferentes. Nelas se escrevia através da pena, utensílio mais ou menos cilíndrico e longilíneo, igualmente de xisto. A parte superior era enrolada e colada com uma pequena facha de papel de várias cores e padrões, conforme o fabricante e as séries produzidas. Havia dois tipos de penas, as de leite, mais macias mas de menor duração, e as rijas, mais duráveis por isso mesmo pelo que os nossos pais as preferiam. Afiavam-se passando-as sobre uma zona cimentada, pois assim iam-se gastando à sua volta. A escrita traduzia-se pelo riscar da superfície pontiaguda na plana, ambas de xisto.
[A minha Geografia da 4ª classe]
Penso que custavam dois tostões cada uma e vendiam-se no comércio do bairro onde se encontravam em caixas de cartão que continham um pó branco (seria talco ?‘) para as conservar. Ao caírem no chão, o que acontecia com frequência, partiam-se com muita facilidade; fazia-se outro bico e continuavam-se a utilizar.
[Um dos mapas que tínhamos de estudar, o do Estado Português de Índia]
Havia quem tivesse atada a um dos vértices do caixilho, uma almofada para apagar o que já não interessava ou então algo que se pretendia corrigir. Tinham também um frasco com água para embeber a almofada feita de trapos. Nem sempre era assim e não havia ninguém que de vez em quando não fizesse a limpeza com os dedos e as mãos e quando necessário, lá ia o lenço ou a manga da bata, tudo isto com o auxílio da saliva (cuspo).
E aquelas contas enormes de dividir ou de multiplicar que enchiam todo um lado, com a operação inversa no outro! Grandes trabalheiras quando não dava certo à primeira!
Hoje, é tudo diferente, só interessa saber como se faz e ter a noção da operação porque o resto pertence às máquinas de calcular - afinal elas só servem para isso mesmo !
[O livro de Aritmética da 4ª classe]
Quando iniciei a minha profissão, vi-me confrontado com a necessidade de efectuar muitas operações aritméticas, principalmente adições de muitas dezenas de parcelas e que os erros cometidos se pagavam com o nosso dinheiro. Lá me adaptei o mais depressa possível mas nunca adquiri a prática dos funcionários mais velhos pois entretanto chegaram as máquinas de somar. Os velhinhos somavam mais depressa e mais certo à mão, do que os novos com as máquinas!
As máquinas foram evoluindo, tornaram-se muito práticas e eficientes até porque a prática na sua utilização subiu consideravelmente. Da gente nova, ninguém somava duas parcelas se não fosse à máquina e quando faltava a energia eléctrica era um pandemónio naquela casa pois o serviço não podia parar. Quase todos tinham na sua secretária uma calculadora a pilhas e assim iam dando conta do trabalho.
A existência da pedra era uma medida económica pois evitava-se assim um gasto contínuo de papel que a grande maioria das bolsas de então não podiam suportar.
Apesar de tudo, a pedra, provoca-me um sentimento de nostalgia.