domingo, 27 de dezembro de 2009

O Natal

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 18 DE DEZEMBRO DE 1998)



Quando escrevemos a última “Memória”, informámos os nossos leitores que tínhamos o desejo e a esperança de voltar às páginas do velhinho “Correio”, talvez o primeiro jornal que lemos, soletrando, principalmente os artigos de âmbito histórico ou desportivo, os que mais nos interessavam. É que, depois de ler o jornal na barbearia do MEU BAIRRO, logo que monetariamente fui independente, assinei-o, o que ainda hoje acontece. Há trinta e nove anos que o “Correio da Extremadura”, como lhe continuaram a chamar os idosos do MEU BAIRRO, pois assim o viram nascer, chega semanalmente às minhas mãos, sem qualquer interrupção, a não ser o atraso que os CTT de vez em quando lhe dá.

Quando estamos longe da nossa terra, a chegada torna-se mais valiosa porque nos inibe de cortar o cordão umbilical. Temos assim possibilidade de acompanhar a vida da nossa terra. Hoje, talvez a necessidade seja um pouco menor pois os meios audiovisuais diariamente levam-nos a casa tudo de importante que se passa no País. Não leva contudo a pequena notícia que ao cidadão comum nada diz mas que a nós, diz-nos muito.

Não vamos escrever nova série de “MEMÓRIAS” mas sim publicar duas ou três que temos escrito há muito e que estão na gaveta, aguardando companhia que pode nunca chegar. De um dia para o outro vão para o cesto dos papéis e acabou-se. Nada de valor ou importante se perdia. O único interesse (se o têm), segundo penso, é fazer trazer à memória dos velhos moradores do MEU BAIRRO, coisas de nada que conhecem tão bem ou muito melhor do que eu.

Tenho a certeza que aos assuntos apresentados os leitores referidos acrescentarão sempre mais isto ou aquilo e farão correcções que acharem por conveniente.

Vamos então ao assunto que nos trouxe.

Onde estava o subsídio de natal? Nem se sabia o que era isso! É uma conquista de ontem! Falava-se à socapa que fulano ou beltrano recebia as broas de Natal que o pat4rão dava a alguns chegados colaboradores, principalmente aos que tinham mais anos de casa. Mas isto constituía uma excepção tal o número exíguo de contemplados, considerados uns felizardos.

Na função pública, por exemplo, o magro vencimento só podia ser recebido a partir do último dia do mês. No dia 23 ou 24 os fundos, se os havia, eram bem poucos, quando não se estava gastando a crédito daqui e dali.

Carne, pouco se comprava; o peixe era mais acessível na altura. Comiam-se ovos pois havia galinheiro no quintal, legumes e hortaliças, afinal o que hoje os técnicos dizem ser uma alimentação saudável.

Apesar de tudo, nesses já distantes anos da década de 40/50, comemorava-se o nascimento do Menino Jesus no MEU BAIRRO, mas a níveis muito diferentes dos de hoje.

Fazia-se o presépio? É claro que sim mas... ia-se às pedrinhas, ao bonito musgo que se encontrava agarrado ao casco das oliveiras que constituíam os olivais do Louro, do Arrais e do Telhadas, que rodeavam o MEU BAIRRO. Traziam-se também de lá umas piteirinhas para compor a paisagem.

Do areeiro existente ao fundo da Avenida, onde se encontra hoje o Bairro de Santa Isabel, extraíamos a areia necessária.

As imagens eram de papel, que adquiríamos em folhas soltas na “Silva” ou na “Escolar”. Limitando-se a indicar os contornos, pintávamo-las com lápis de cor, colávamos em cartão e finalmente recortávamos.

E como se fazia a iluminação?

Certamente que não íamos às casas dos trezentos que evidentemente não existiam, comprar por dois tostões uma instalação eléctrica. Só conheci tal quando já era um homem feito. Se nessa altura ainda havia casas no MEU BAIRRO que não dispunham de energia eléctrica!

Mas nem por isso os presépios deixavam de ser iluminados. Em casa de meus pais utilizavam-se as cascas (conchas) de caracoletas que se enchiam de azeite colocando-se um pavio de algodão ou de uma planta cuja uma das partes se prestava a essa utilização, depois de convenientemente seca e que era conhecida por erva das lamparinas. Posicionavam-se enterradas na areia e em sítios estratégicos, evitando-se a sua visibilidade.

Havia quem utilizasse como lamparinas outros objectos e o petróleo igualmente era utilizado, aqui provocando um cheiro nada agradável.

Havia que ter cuidado e muitas vezes aconteciam incêndios.

A estrela também nós fazíamos, em papelão e forrada com a película “prateada” que envolvia alguns maços de cigarros de então.

É evidente que havia presépios mais evoluídos, de figuras impressas a cores e outras formando logo o conjunto e mesmo de barro ou louça, mas o vulgar, era o que descrevemos.

Nessas alturas mal se falava no Pai Natal. A mim diziam-me que as prendas eram postas no sapatinho pelo Menino Jesus que descia pela chaminé. Nesse sentido, foi sempre lá que pus o sapato

Havia uma regra a respeitar, é que o Menino Jesus só vinha depois da meia-noite e não se sabia a hora a que chegava, já que o trabalho era muito. As crianças, não se queriam deitar mas à hora habitual o sono chegava e lá íamos para a cama. A minha preocupação, lembro-me bem, tinha a ver, além das prendas, com a chegada do Menino Jesus, que queríamos conhecer.

Só no outro dia (dia 25), quando nos levantávamos, éramos alertados para a circunstância de ainda não termos visto o que o Menino Jesus nos tinha posto no sapatinho. Era a euforia, os pulos, os beijos, as primeiras observações!

O que é que o sapatinho no MEU BAIRRO tinha normalmente? Um brinquedo muito simples (automóvel de folha, camioneta de madeira ou carro de bois, uma pequena bola de borracha, prenda não muito usada porque partia os vidros das janelas dos vizinhos quando não das nossas, etc.) as meninas contempladas com bonecas, camas, tachos e panelas. Começavam bem cedo a secundarização da mulher!

Além disso havia umas “tabletes” de chocolate ordinário, daquelas que tinham uns bonecos colados à “prata” envolvente, que penso custavam trinta centavos, uns rebuçados e uma peça de vestuário. Quem tinha tudo isto era muito bom – sentia-se feliz. E bem pouco era!

Notar que não havia habitualmente prendas para os filhos mais crescidos que, quando já trabalhavam, eram os “meninos jesus “dos mais novos. Mais ninguém na família recebia prendas!

Não posso deixar de aqui referir duas prendas que o meu sapatinho acolheu.

Teria dez anos e por isso já sabia na altura que o Menino Jesus era outro, no caso a minha irmã mais nova: - uma caixa de madeira (dupla) para transporte e arrumação de lápis e borrachas, que muito gostei e uma pequena bússola. Pois caro leitor, apesar de tantos anos passados, essas duas insignificantes peças ainda fazem parte do meu património e têm para mim, elevadíssima cotação.

Também nessa altura se procurava ter uma mesa mais rica. A consoada não era muito uniforme. O bacalhau (na altura a pataco) com batatas e couves constituía o prato dos pobres, um galo corado no forno e nalgumas casas cabrito recheado constituíam algumas das hipóteses nas casas com menos dificuldades. Mas eram pratos que apareciam na mesa uma vez por ano!

Mais uniforme era a doçaria que se tratava quase exclusivamente da massa frita representada nos velhozes (filhós), “fritos” e coscorões. Quem tivesse origens alentejanas, como a mim me acontecia, não deixava de haver as azevias de grão ou batata-doce.

Sobre o assunto, foi o que a Memória me conseguiu trazer ao invocá-la.