quarta-feira, 20 de maio de 2009

Os Santos Populares

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 15.01.1993)




Santo António, São João e São Pedro que se festejam respectivamente a 13, 24 e 29 de Junho, constituem três figuras gradas da hagiologia e que o povo português conhece como os três santos populares.

Santo António, o maior santo português, revelou-se como grande pregador e teólogo. O número de milagres que lhe são atribuídos é o suficiente para fazer dele um grande taumaturgo. Um ano depois da morte, era já canonizado pela Igreja.

São João Baptista, o precursor de Cristo que foi santificado ainda no ventre da mãe. O profeta hirsuto, queimado pelo sol, enrijado pelos frios. Estava a baptizar crentes no Jordão, quando Jesus se fez baptizar por ele. Logo o reconheceu como Cordeiro de Deus, o Messias anunciado pelo Profeta.

São Pedro, Apóstolo, o maior dos Apóstolos. Era natural da Galileia e pescador em Cafarnaum. Juntamente com seu irmão André, foram os primeiros por Jesus Cristo para o seguirem. Acompanha Jesus em toda a Sua Vida, até à agonia no Monte das Oliveiras. Foge no momento da prisão e volta para saber o que sucedeu a Jesus Cristo. Nega Cristo três vezes. Foi para Roma tendo sido o primeiro Bispo. Preso e crucificado de cabeça para baixo (64 d.C) a mandado de Nero.

Estas três figuras da Igreja de santidade tão austera, aparecem na boca do povo como galhofeiros, entrando na velhacaria para não dizer na imoralidade.

Santo António é o frade que vai espreitar as moças à fonte para lhe partir a cantarinha e depois, consertando-a, metendo conversa e a partir daqui cada qual arranja o que lhe apetece.

É casamenteiro e fazem-se as mais variadas “sortes” sobre a sua protecção para se saber do casamento, desde o enfiar o dedo na fechadura da capela até ao espigar da alcachofra queimada na fogueira feita em sua honra.

São João aparece armado em conquistador... se as moças
não vão à fonte, São João todo se mata, diz a quadra popular.

São Pedro surge transformado em casamenteiro das viúvas e a dar com uma moca, à porta do Céu, nas virgens que lá apareçam.

É natural que as festas profanas com o decorrer dos tempos se tivessem misturado com as religiosas e que aflorem ainda resquícios de paganismo. Mas quem sou eu para o dizer!

***

Depois deste pequeno intróito ao assunto que se pretende abordar e que consideramos de interesse, iremos então ver como se festejavam os Santos Populares no MEU BAIRRO.
Nos anos cinquenta ainda era notório em toda a cidade o festejo dos Santos Populares com locais engalanados com bandeirinhas de papel, balões e outras artes e onde a fogueira de rosmaninho e carrasco, com cheiros de alecrim, era rainha de quantos gravitavam à sua volta.

Se o maior número se espalhava pelos arrabaldes, lembro-me bem de nos becos do velho burgo haver festa rija.

Os “mirones” percorriam a cidade para ver onde a festa era mais animada e muitos acabavam por se fixar na minha rua.

Nesses tempos e que fosse do meu conhecimento, dois locais marcavam na cidade, a minha rua e a rua de José Paulo, numa velha e popular zona da cidade.
A razão deste facto estava no número e qualidade dos jovens e nos familiares que conseguiam mobilizar.

Para se festejar os santos, uma coisa era indispensável, a queima de arbustos aromáticos. Então, as minhas irmãs e mais raparigas vizinhas, começavam a seringar à volta de meu pai no sentido de conseguirem a sua adesão ao projecto, o que se tornava indispensável. Não demoravam muito a ouvir o sim, afirmando sempre que era o último ano!

Fervoroso caçador, conhecia muitíssimo bem as redondezas e os proprietários locais, alguns deles espalhados por casalecos de que ainda retenho o nome de alguns.

Na altura não se podia pensar em alugar qualquer transporte que era escasso e mesmo que fosse encontrado seria a preços que as bolsas não comportavam. Assim, só havia uma maneira, transportar a matéria-prima às costas.

No dia aprazado, juntavam-se à minha porta os rapazes e raparigas das redondezas, tudo gente bem conhecida. Todos tinham obtido a devida autorização pois os pais sabiam como as coisas decorriam.

Era normal aparecerem os “papo-secos”, rapazes que não eram dali mas que pelos moços ou moças sabiam do “passeio” Aconselhados a isso, lá iam pedir ao meu pai para fazer parte do grupo. Parece que o estou a ver. Mirava-os de cima a baixo dando o seu consentimento, afirmando que eram precisos braços para trazer o rosmaninho.

É claro que alguns dos “desconhecidos” catrapiscavam ou pretendiam catrapiscar alguma moça lá do bairro.

A jornada era sempre à tarde, depois de se sair do emprego.

Nos primeiros anos eu era tão pequeno que ia pela mão de meu pai que na outra levava uma enxada rasa para cortar o mato. A minha mãe, sempre que podia, também nos acompanhava.

O pessoal ia sempre à frente e nunca se podia afastar muito porque se o fizesse, ouvia-se uma voz reclamando nesse sentido.

Passávamos junto à horta do Manuel Serralha, onde havia grande tanque, junto ao qual existia vetusta nogueira, provocando acolhedora sombra e da casa da Ti Joaquina, bebia-se na velha fonte do Pingo-Pingo (1618) hoje considerada imprópria para consumo, e metíamos depois pela estrada (!), pouco mais que um caminho, da Carreira de Tiro. Logo no lado direito havia um casal, à curva, onde me lembro, e já era crescidote, ter sido festejado um 1º de Maio pelos tipógrafos escalabitanos e quase clandestinamente.

Continuando a caminhada e onde a cantoria não faltava, passávamos pelas instalações da Carreira de Tiro, na altura chefiada por um oficial já velhote que morava no MEU BAIRRO. Ia e vinha todos os dias num carro cujo tipo era utilizado pelo exército, puxado por dois cavalos e lembro-me muito bem de no Verão se proteger com um chapéu-de-sol.

Havia um pequeno pontão sobre um ribeiro em cujas guardas (muros), nos costumávamos sentar, descansando da caminhada. Depois, era o entrar pela mata, sobreiros, azinheiras e pinheiros, conforme a zona. Lembro-me bem que o terreno era pobre, areento. Era lá que se encontrava o desejado rosmaninho, na época, ainda florido.
Começa a tarefa árdua do meu progenitor que o ia cortando e a rapaziada juntando em montes. O fazer os molhos era outra tarefa que não delegava em ninguém – tinha grande prazer em despachar os “papo-secos” a quem destinava molhos de pequeno volume mas quanto ao peso (estavam bem apertados) de se lhe tirar o chapéu! Era a “taxa” que pagavam por acompanhar as meninas do MEU BAIRRO.

Quando a minha mãe ia, havia então a tentativa de minorar a situação, procurando que os molhos fossem mais pequenos, o que por vezes conseguia.

Os “papo-secos” não queriam dar parte de fracos e lá “alombavam” com os molhos. A rapaziada mais miúda do bairro chegava a fazer padiola para transporte.

Lá vinha tudo cantando a caminho do bairro e que na parte final tinha grande subida a vencer – era o maior obstáculo.

O meu pai seguia no fim do grupo com a enxada às costas e as mãos cheias de bolhas devido ao seu manejo a que não estava habituado e, nunca trouxe um ramo de rosmaninho. Ia apreciando o derrear dos “papo-secos” que, em casos extremos, eram obrigados a dar à barra, havendo necessidade de reduzir o molho... a metade!

Chegava tudo estafado mas contente!

As raparigas, além do rosmaninho, traziam as alcachofras que disputavam ardorosamente a fim de proceder às “sortes adivinhas”.

A carga era toda bem guardada num quintal.

Entretanto havia que embelezar o local. Fazia-se o peditório na vizinhança pelas raparigas que afinal eram as dinamizadoras de toda a acção.

Compravam-se balões (poucos que eram caros) e papel de seda para fazer bandeirinhas que colocadas em fios se atavam às árvores e davam um ambiente festivo ao local, já que as árvores da minha rua a isso possibilitavam.

Não me esqueço que para fazer a fogueira era necessário despejar uns baldes de areia (que se iam buscar ao areeiro que ficava muito próximo) sobre o alcatrão da rua para que este não se derretesse! Procurava o meu pai junto da P.S.P. a permissão para um pouco para além da meia-noite o que normalmente era concedido no máximo de uma hora e desde que não houvesse reclamações que nunca apareciam e dependendo muito do guarda de serviço.

Terminando cedo, tinha de começar cedo. Era o saltar contínuo à fogueira, sós ou acompanhados mas num sentido apenas para evitar choques e quedas no braseiro.

A fragrância do rosmaninho que os pulmões bebiam, fazia dispor bem. Não faltavam os bailes de roda onde velhos e novos entravam.

Às doze badaladas era a euforia com a queima da boneca que nossa mãe pacientemente fazia com paus de vassoura e canas, bem vestida de papel, exteriormente de seda e de cores vivas.

Na armação eram atadas com arame delgado, bombinhas e bichas de rabiar e na cabeça umas bombas de morteiro.

A marafona era colocada ao fundo da avenida, nessa altura era o fim da rua e um pequeno largo térreo e sem casas nas proximidades, metida numa barrica com areia para se segurar de pé.

À medida que as bombas iam rebentando, era uma alegria, atingindo o auge quando o morteiro rebentava.

Os rapazolas entretinham-se com as bombinhas e as bichas de rabiar que por vezes criavam situações caricatas.

As raparigas não dispensavam queimar as alcachofras floridas, pensando no desejado. Espetavam-nas num vaso no quintal e se na manhã seguinte voltassem a florir, acreditavam que iam casar com o rapaz que traziam no pensamento!

No fim da festa os vizinhos aproveitavam o brasido para assar meia dúzia de sardinhas (pelo S. João, pingam no pão, diz o povo) e beber um copo.

Eram assim festejados os Santos Populares no MEU BAIRRO e na minha rua.
Quem se lembra?

Os bailarecos com músicos, apareceram muito mais tarde mas ainda no meu tempo.
Como os tempos são diferentes!

Hoje “festejam-se” em discotecas e bares!

Nem os jovens conhecem rosmaninho ou alcachofras.
O Mundo não pode parar!