sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O tipo de habitação

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 21 DE JUNHO DE 1991)



[Desaparecida habitação que foi de José Calharizo, Vilgateira, 1965. Foto JV]

Na nossa habitual diversidade, escolhemos para hoje este assunto.

Consideramo-lo um factor importante para o conhecimento do que foi a vida varzeense.

Como temos dito noutros escritos, o que vamos referir não é exclusivo da freguesia da Várzea, como se compreende, já que, outras vizinhas e das redondezas nele se podem rever.

A nossa descrição não recuou muito no tempo, além da observação própria ao que conhecemos e ao pouco que resta, beneficiámos das informações pormenorizadas que nossa mãe nos fazia, já que na sua infância conheceu quase todas as casas da aldeia e muitas da freguesia, das mais humildes às mais abastadas.

Tomámos em consideração não a casa do lavrador ou do indigente, mas a do fazendeiro e trabalhador rural que muito se aproximavam.

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A casa típica do varzeense era de uma maneira geral térrea, terra batida que se lavava diariamente com esfregão, de planta rectangular e telhado de uma ou duas águas, coberto de telha de canudo que assentava no ripado pregado ao barrotame constituindo assim “telhados de telha vã”.

Normalmente possuía chaminé.

Os materiais de construção eram o adobe e o tufo, ajudado com alguma pedra e tijolo de burro ou lambaz, este utilizado em determinadas partes, como em portas e janelas.

No adobe, de forma de paralelepípedo achatado, o barro é estruturado com palha, dando assim origem a uma contextura mais sólida.


Saídos de forma de madeira de duas asas, eram secos so sol. Colocados ora ao lancil, ora de través, eram reforçados nas ligações pelo tufo que é vulgar na região. Rebocados com areia amassada com barro ou cal, mas ainda não “hidráulica”.

As fachadas das habitações eram sempre caiadas, recebendo nalguns casos barras de cor, dadas pelo ocre, azul ou amarelo e menos frequente o “grenat” ou cinzento.

As paredes laterais e a da retaguarda, quando o telhado era de uma água, nem sempre eram rebocadas, sendo nalguns casos caiadas.

Nas povoações de tipo alongado, situavam-se nas “testadas das fazenda” cujo comprimento é perpendicular à estrada ou caminho. Deixavam quase sempre um pequeno espaço fronteiro a que chamavam pátio, protegido por meios variados – muros de adobe, sebes ou grades.


A frontaria possuía uma porta e duas janelas, variando por vezes este número, com postigo e a porta também com gateira. Todas as guarnições eram de madeira.



Com o rodar dos tempos, as janelas passaram a ter duas folhas, abolindo-se o postigo que se manteve mais tempo na porta mas que acabou por sofrer a mesma transformação.

Eram todas frequentemente besuntadas com azeite frito (borras) misturado com petróleo no intuito de fazer a protecção necessária, evitando o bicho.

Só muito depois e significando um luxo apareceram as vidraças. Passando as portas a duas folhas, naturalmente que desapareceram as gateiras. Entretanto, começa-se a usar a tinta para a protecção das madeiras e natural embelezamento.

As guarnições de madeira nas portas e janelas são substituídas primeiro por trabalhos de argamassa, que a cal hidráulica já permite e depois por cantaria para os mais endinheirados.

No pátio o varzeense gostava de ter ao lado da porta uma parreira ou uma roseira. Algumas plantas vivazes, de adorno e quando o espaço o permitia, uma laranjeira

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A porta dava para a “casa de fora” que ligava com os quartos e a cozinha. Esta divisão também chamada “casa de entrada”, tinha ao meio uma mesa de abas decorada com flores. Algumas cadeiras”em branco” e um caixão (arca de madeira) onde se guardavam as roupas, lençóis, mantas de lã e de trapos, etc.

Paredes decoradas com quadros rústicos e de motivos religiosos. Tapetes e passadeiras feitos com tiras de várias cores e padrões, provenientes de sobejos, aos quadrados, com uma bainha e que constituíam um artesanato hoje praticamente perdido.

O quarto de dormir, onde só se entrava ao cair da noite, além da cama de ferro mais ou menos artística, com enxergas de palha de trigo e colchões de camisas (palha de milho), tinha um lavatório de ferro, com espelho, bacia e jarro de esmalte. Cadeira que em muitos casos servia de mesa-de-cabeceira onde se colocava a palmatória, de esmalte ou barro. Tapetes como os já referidos.

Colcha de algodão quando não feita de trapos, no mesmo tipo dos tapetes e neste caso aparecia sobre a cama uma grande almofada do mesmo artesanato.

Debaixo da cama, o bacio de barro, esmalte ou louça.

Cozinha de chaminé alta. Um fogareiro feito de panela velha em que se abria uma boca. Com o auxílio de duas pequenas barras de ferro, barro e bocados de telha, fazia-se o restante. No rebordo, três pontos salientes para colocação do utensílio desejado. Todo caiado, dava-lhe a harmonia desejada.

Na parede, e todo o interior da casa era de branco caiado, a grade, construída de ripas onde se dispunham camarões e enfeitada com franjas de papel especialmente fabricadas para o efeito e onde abundavam motivos culinários ou então de papel de seda recortado conforme a habilidade da varzeense.

Era o local para pendurar o “esmalte” – cafeteiras, panelas, tachos, etc., constituindo um luxo, havendo exemplares que nunca foram servidos, constituindo verdadeiras peças de decoração.

Uma pequena mesa, sempre muito lavada com sabão amarelo, em cujas gavetas se guardava, o talher, primeiro de ferro, depois de alumínio. Noutro canto, a cantoneira que recolhia pratos e outros utensílios. Na cantareira, bilhas, quartas e infusas.

Muitas vezes, englobado também na habitação, o celeiro que funcionava também como arrecadação. O produto das colheitas para ali ia:- cereais, azeite, vinho, batatas,.réstias de cebolas e de alhos. Também alguns utensílios agrícolas ali tinham o seu lugar.

Com o decorrer dos anos, a casa de fora e os quartos passaram a ser sobradados e forrados e a cozinha e o celeiro, já com chão cimentado.

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No logradouro contíguo era frequente o poço que tanta falta fazia e a cova do bagaço para alimentar o porquito. O forno de cozer pão ficava próximo e tinha telheiro de uma água em cujo beirado se colocavam as abóboras. Pial alongado. Sobre a trempe, cujo fogo era alimentado por cepas ou lenha de oliveira, o tacho ou a panela. Era ali que se confeccionavam as refeições e se preparava o comer para os animais. Um ou outro banco tosco – três tábuas e duas travessas pregadas, isto quando não existiam cepos em sítios fixos, servindo de assento.

Não estava longe o rolheiro da lenha.

O telheiro substituía quase totalmente a cozinha, a que se recorria muito excepcionalmente, o que acontecia em dias festivos, mas nem sempre.

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Naturalmente, as transformações na habitação varzeense, continuaram. Corremos toda a freguesia e muito pouco resta ao jeito antigo. O que existe está adulterado ou em ruína.

A vida varzeense tomou outros rumos. De exclusividade local e virada para a “terra”, passou a ligar-se ao comércio, à indústria, à prestação de serviços na cidade e ainda que não tivesse havido um rompimento total com a vida agrícola, pouco passa, em muitos casos, de um simbolismo, cada vez menor.

Agora a freguesia está semeada de vivendas, algumas viradas para o luxo, desfasadas do ambiente que as cerca. O cimento e o ferro, os telhões de variadíssimas cores e de cimento, o alumínio, o mármore e as persianas são hoje materiais e peças que marcam pronunciadamente a habitação onde o branco da cal quase desapareceu.

Desde 1930 que os censos populacionais indicavam um decréscimo na freguesia, interrompido em 1981. Pensamos que a freguesia da Várzea iniciou uma nova fase – a de dormitório da cidade de Santarém.