sábado, 1 de janeiro de 2011

Uma indústria artesanal

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO EM 15 DE OUTUBRO DE 2004)

Os assuntos aparecem sem sabermos explicar, ou por outra, um pequeno pormenor a isso nos leva.

No mês canícula de Agosto encontrava-me, com o é meu hábito, naquilo que considero o “Fim do Mundo”, onde se quiser, durante todo o dia não vejo ninguém mas em que nunca me aborreço visto o trabalho, de que gosto, a efectuar, não o conseguir acabar. E podem crer, que é do mais variado!

Quando uma pessoa chega à conclusão de não ter nada para fazer, a não ser sentar-se num banco de jardim, esperando que “ela” chegue, está tudo acabado! Mais vale chamar o “barco” e “embarcar”.

Deixemos este assunto, que é matéria a que não se pode fugir e iremos ao encontro do motivo que originou esta MEMÓRIA DO MEU BAIRRO.

A carrinha que accionou a sua música identificativa quando chegou ao pequeno povoado e cuja sede da empresa se situa a duzentos quilómetros de distância , pára no largo frente à nossa casa esperando que alguém apareça para fazer alguma compra.

A sua paragem quase que nos obriga a comprar qualquer coisa, ainda que dela não precisemos na altura!

Trata-se de uma carrinha de congelados, peixe, carne, alguns vegetais, pasteis, croquetes e rissóis e até caixas de gelados!

Sou freguês principalmente de peixe, já que a nível hortícola a minha produção chega, tal como a carne de aves.

De tudo tinha e acabei por comprar uma caixa de gelados pois isto de se caminhar para velho começa a dar as suas indicações - todos sabemos que as crianças e os velhos gostam de coisas doces, não é verdade ?

GELADOS! Fez-me regressar à minha infância e consequentemente ao MEU BAIRRO.

Não havia dinheiro para gelados na grande maioria das bolsas e os que o tinham, consideravam isso como supérfluo.

Hoje, qualquer estabelecimento comercial tem uma arca de gelados, havendo variadíssimas marcas e o consumo é constante. Naquele tempo as coisas eram bem diferentes, uma vez por outra lá se comprava um geladinho, o que era uma festa !

Não havia gelados industriais, pelo menos não os conhecia. No MEU BAIRRO e no Pátio Frazão, durante muitos anos funcionou o fabrico artesanal de gelados. Penso que tinham o nome de Gelados Escalabitanos. A sua venda era ambulante e feita através de uns carrinhos que se moviam por intermédio de três rodas (triciclo). Até ao guiador, cuja função era substituída por um varão, era igual a uma bicicleta. Daqui para a frente existia uma caixa de madeira, cuja parte dianteira era em forma de quilha para que na deslocação se sentisse menor resistência do vento. A caixa, cuja altura se situava a nível do peito de uma pessoa, era suportada por um eixo nas extremidades do qual giravam duas rodas de bicicleta.

[Pátio Frazão. Foto JV]

A caixa era pintada de branco e as faces laterais tinham uma cercadura vegetalista de tons de azul se a memória não me atraiçoa, na parte central um motivo alusivo ao conteúdo e a marca - gelados escalabitanos.

O tampo tinha uns varões circundantes, ao centro e interiormente o depósito de alumínio (?) ou inox (?) do gelado e uma caixa, exterior, de quatro faces rectangulares, envidraçadas, de tapa em tronco piramidal e na qual se encontravam os copos cónicos de massa de farinha, penso que de dois ou três tamanhos. Julgo que havia igualmente um pequeno reservatório onde era colocada a espátula - colher que se destinava a aviar os gelados.

Os recipientes dos gelados e da espátula eram cobertos por tampa de forma cónica de borla na ponta e que os fechava hermeticamente.

Fica deste modo apresentado o carrinho dos gelados que era, devido às suas características e cores, muito atraente para os adolescentes e petizada.

Esquecia-me de uma coisa, os carinhos tinham buzina de borracha, ou seja um fole de borracha que quando apertado pela pão, fazia passar o ar por uma palheta metálica, produzindo assim um som que de uma maneira geral era diferente de buzina para buzina.
O proprietário e fabricante dos gelados, raramente fazia a sua venda mas ainda me lembro de o ver com um boné redondo e de pala. Era um homem franzino, seco de carnes e pouco falador. A venda estava destinada aos empregados, rapazes de catorze ou quinze anos. Digo rapazes porque existiam vários carros mas não posso precisar o número, talvez uns três ou quatro.

Esta actividade dava-se naturalmente nos meses de verão. Como é evidente desconheço as ordens que os rapazes recebiam, sei sim que se deslocavam aos locais onde havia mais crianças e adolescentes como eram os estabelecimentos de ensino e nesta altura, com significado só havia o liceu e o externato Braamcamp Freire (EBF). O principal negócio era feito por ali. Nos intervalos, a venda estava assegurada pois sempre havia aqueles que compravam sempre. Alguns até eram conhecidos por alcunhas relacionadas com isso.

O vendedor perguntava qual o sabor desejado e depois era a discussão perante a quantidade! Uma bolsa de cabedal e de correia recebia o dinheiro.

Os restantes carros faziam a cobertura da cidade não conhecendo eu outro fabricante.

Ao cair da tarde era o regresso a casa.

Esta actividade não dava para a manutenção anual da família pelo que tinha de haver outras complementares.

Assim, outros carrinhos de base semelhante, eram transformados em assadores de castanhas e que na época própria percorriam a cidade batendo por vezes as portas das tabernas onde os apreciadores as compravam para acompanharem a água-pé.

O assador de barro, reforçado de arame, o abano e os jornais cortados em quadrículas, são coisas que ainda hoje se vêem.

Em muitas tabernas havia a concorrência de mulheres que junto à sua porta se colocavam, sentadas num banco ou pequena cadeira, com o seu assador e que quase monopolizavam o negócio.

Sempre ouvi dizer que as castanhas assadas com sal que tinha servido sardinhas, tornavam-se mais gostosas. Ainda hoje não sei se é verdade, mas é capaz de ter a sua lógica.

Havia mais outra actividade a que o “industrial” recorria para se poder manter:- a venda de barquilhos através de um jogo.

O barquilho, termo originário do castelhano barquillo, constitui uma guloseima, feita de uma massa rija e estaladiça, espécie de bolacha e em forma de cone.

Um cilindro, de folha-de-flandres que colocado no chão, ficaria pela altura das mãos de um adulto, era o recipiente transportador dos barquilhos, colocados aos maços, formando longos canudos.

A caixa dos barquilhos, chamemos-lhe assim, teria um diâmetro de base de cerca de um quarto da altura e era exteriormente pintada de um tom acastanhado, semelhante ao utilizado nos latões das vindimas, presumindo que a tinta fosse da mesma qualidade.

A face, que constituía a tampa, era abaulada no sentido convexo. O círculo era dividido, na sua periferia por uma rede de quadrículas entre as quais estavam escritos, a tinta branca, os vários dígitos e em dois ou três casos, dois algarismos que eu penso não ultrapassaria três dezenas.

De um eixo central, rodava pequeno braço na extremidade do qual se encontrava uma palheta maleável mas resistente que depois de ser accionada pelo jogador, parava determinando a sorte da jogada. Se a memória não me falha, no meu tempo de miúdo, cada jogada custava dois tostões!

A caixa, que tinha uma correia de cabedal da largura de dois dedos, colocada nas extremidades, era transportada às costa do vendedor que ia anunciando o jogo e a possibilidades de ganhar barquilhos. Utilizava naturalmente os mesmos locais que percorria para vender os gelados.

Nunca mais vi tal a vender mas ainda me parece ter o gosto daquela massa estaladiça e onde era notório o gosta a canela.

Nas minhas MEMÓRIAS DO MEU BAIRRO toquei neste assunto de uma maneira mais superficial quando me referi em 23 de Dezembro de 1993, sobre OS PÁTIOS.

Já se passaram quase onze anos ! A título de curiosidade diremos que a primeira MEMÓRIA foi publicada no número de 27 de Novembro de 1992. Como o tempo passa!