quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Quando nevou no meu bairro

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 11 FEVEREIRO DE2000)

O tempo sentido ultimamente no País, com temperaturas baixas e nevões nas terras altas da Estrela e Trás-os-Montes, com interrupções de estradas e até o isolamento de pequenas povoações, trouxe-nos à memória factos passados e que recordamos com saudade.

Hoje as “televisões” que invadem luxuosas moradias e míseros tugúrios, tudo mostram, de bom e de mau. Em parte são responsáveis pela falta de conversação entre os elementos da família, que poucas vezes se encontram por divergências de horários e outras razões, pela falta cada vez mais notória de leitura e consequente desconhecimento da língua mãe, para não dizer “escola” que se transformou para os mais vulneráveis.

Acontece muitas vezes e porque os programas são diferentes, cada qual escolhe o que mais gosta e recolhe-se ao seu aposento pois todas na casa dispõem de televisor para evitar conflitos. Agora vai-se dizendo que os portugueses gastam mais do que podem e andam endividados com consequências imprevisíveis!

Claro que a televisão tem coisas boas como não podia deixar de ser, nós é que por vezes temos dificuldade em fazer a depuração.

Nunca fui grande amante de televisão, a não ser nos seus primórdios, deslocando-me aos locais em que se encontravam para tudo ver, especialmente os concursos conduzidos por Artur Agostinho e de que me lembro do Quem Sabe, sabe. Nessa altura, muito poucos tinham possibilidades de comprar um televisor e mesmo esses, pequeno número o fazia. As associações e alguns cafés é que os possuíam comprados muitas vezes a prestações para fruição de associados e fregueses. É o que se assemelha hoje um pouco ao canal desportivo.

[Rua Fernão Lopes de Castanheda]
O conhecimento de um miúdo de então, resumia-se ao que aprendia com a família e com a vivência da sua rua, quando muito do seu bairro. Brincava-se e guerreava-se com os vizinhos e com as raparigas, nem pensar. Se muito excepcionalmente, uma ou outra entrava por exemplo num jogo de escondidas, era logo chamada de rapazona!

De NEVE eu conheceria só A BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES e isto pelo conto que me contavam pois ainda não sabia ler. Esse livrinho que vim a possuir e que existiu até não há muitos anos, foi dos primeiros que teria lido e que fazia parte, com outros, de uma colecção que, se a memória não me atraiçoa, tinha o título de Joaninha.

Numa manhã de Inverno do já distante ano de 1945, as minhas irmãs quando acordaram e o seu quarto tinha uma porta larga e envidraçada que dava para comprida “marquise” e para as traseiras da casa, viram os terrenos que circundavam o presídio militar, na altura um olival onde se semeava trigo, todos branquinhos, de tal maneira e muito admiradas, foram comunicar aos pais que tinham de noite espalhado cal nos terrenos do presídio, que viessem ver como era verdade!

Lembro-me, como se fosse hoje!

Fomos então esclarecidos que aquele branco não era de cal mas sim de NEVE o que era muito raro acontecer em Santarém. Ficámos eufóricos e sem nos importarmos do frio que fazia quisemos logo ir para a rua para mexermos naquela coisa branca, sentir nas nossas mãos o que era a neve que pela primeira vez víamos.

Aquilo é que foi brincar, fazíamos bolas e o que a nossa imaginação nos transmitia. Era o correr, o rir, o saltar, o atirar a neve uns aos outros. Os adultos igualmente não escondiam a sua admiração e bem poucos já teriam visto neve tão perto. O pior, e lembro-me da minha tristeza, foi quando a temperatura começou a subir... tudo desapareceu e a criançada não queria que tal tivesse acontecido! E perguntei a meus pais se no outro dia não havia neve outra vez? Tinha ficado fascinado!


Mas a neve voltou ao MEU BAIRRO não no dia seguinte, como eu queria, mas nove anos depois, e isto se posso confiar na minha memória.

Devia ter sido nos primeiros dias de Fevereiro de 54, já então era um homenzinho. Já não brinquei como da primeira vez visto a idade ser outra mas alinhei nas brincadeiras dos mais velhos.

Lembro-me que um vizinho que era chefe da polícia e anormalidade para tirar umas fotografias à rapaziada, que me lembro de ver e amador fotográfico, daqueles que faziam as revelações, aproveitou a até me recordo onde foram tiradas.

Nessa altura, a Avenida não tinha saída. Havia um mau caminho que nos levava à escola primária que devia ter meia dúzia de anos de construída. Logo após a descida e antes de chegar ao pátio da escola, existia uma barraquita a que depois meteram, por dentro, algo parecido com paredes. Lembro-me de chegarem a viver ali três famílias. Pois foi no pequeno largo em frente desta construção que as fotografias se tiraram. Simulou-se um combate de boxe, servindo a neve de luvas.

Além desta memória também consigo recordar que no campo de Sá da Bandeira (Campo Fora de Vila como os mais velhos continuavam a chamar), frente ao Regimento de Artilharia 6 e onde se encontra hoje a PSP, os soldados fizeram com a neve um grande boneco que causou alguma sensação.

É claro que não nevou só no MEU BAIRRO, os nevões para alcançarem Santarém tiveram âmbito nacional e foram “manchete” nos jornais.

Só voltei a ver neve em 1962 quando me encontrava exercendo a minha actividade profissional nas abas da Serra do Caramulo. Ali já era um acontecimento, que não sendo normal, também não era invulgar, pelo que passava quase despercebido. Depois, e muito mais tarde, voltei a vê-la, onde no País é rainha - na Serra da Estrela, onde a fui mostrar pela primeira vez ao meu filho que com ela delirou, tal como eu, em 1945, com uma diferença, ele era mais novo do que eu.

Certamente que os moradores do MEU BAIRRO daquela altura e que por ventura leram este arrazoado, a sua MEMÓRIA trabalhou e quem sabe, lembram-se de mais coisas do que eu.