sábado, 20 de fevereiro de 2010
Lembrando Silva Rabico, Mestre de Encadernação
[José da Silva Rabico]
(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 4 DE FEVEREIRO DE 2000)
A MEMÓRIA de hoje se tem alguma coisa de comum com as até agora escritas, e tem, é diferente de todas as outras.
A figura do MEU BAIRRO, recentemente desaparecida e que vou lembrar, conheci-a precisamente devido a estas croniquetas que venho escrevendo nas páginas deste semanário desde inícios de 1991.
Velho assinante deste jornal, leitor por devoção e acrisolado amor a tudo o que dissesse respeito à sua terra natal, começou a seguir semanalmente os TEMAS VARZEENSES, recortando-os para coleccionar. Quando no último tema informei os leitores interessados que dispunha, por intermédio de fotocópias, algumas colecções para quem estivesse interessado, foi a primeira ou das primeiras “encomendas” que recebi.
Era nome completamente estranho para mim e não o via ligado à Várzea. À minha dúvida respondeu-me que não era varzeense, mas santareno nascido no Jardim de Cima, freguesia do Salvador.
Daquele primeiro contacto e devido ao interesse mútuo, outros foram acontecendo a nível de correspondência. Devido ao meu nome, Silva Rabico começou a relacionar-me com alguns dos meus famílias que conheceu mas que naturalmente tive que indicar a relação de parentesco. Começou a nascer uma amizade.
Acontece que José da Silva Rabico morou alguns anos no MEU BAIRRO, na confluência da Rua Almeida Garrett (antes, Rua B) com a Frei Gaspar do Casal no canto da Zulmira, quando ali existia uma mercearia propriedade de uma senhora com esse nome. É devido a esta circunstância que incluí esta lembrança nas MEMÓRIAS DO MEU BAIRRO.
Silva Rabico que ficou órfão de pai de tenra idade, foi criado e educado no Asilo da Misericórdia onde fez a instrução primária em 1933. Entra entretanto para a escola de encadernação daquela instituição e com dezoito anos apenas, quando findou o período de internamento, fica como encarregado da oficina, funções que desempenha até 1946.
Aquela escola - oficina gozava e penso que ainda goza de grande reputação entre os especialistas e amantes de boas e artísticas encadernações. Devido ao meu afastamento, à morosidade na execução, por avalanche de trabalho e porque entretanto encontrei na cidade onde vivo um bom artista do ramo, deixei de recorrer àqueles serviços, onde conheci não o Mestre Silva Rabico mas o seu substituto, Mestre Eliezer Fonseca que lá trabalhou muitos e muitos anos. Na minha pequena colecção de livros possuo alguns encadernados (umas dezenas) naquela oficina e que considero muito bons trabalhos, todos em carneira e artisticamente decorados.
De 1946 a 1967 Silva Rabico junta-se a outro grande profissional, formando a dupla Torres & Rabico.
Porque penso que me o autorizaria, não resisto à tentação de transcrever o que em carta este nosso já saudoso amigo nos transmitiu:- Fizemos milhares de encadernações para muita gente simples e humilde, mas também para gente grada, oriunda de um elevado extracto social dessa época e bem colocados na vida. Hoje sinto um certo orgulhozinho por ter servido essas pessoas, que certamente preferiram as nossas encadernações porque o trabalho era bem feito e lhes agradava.
Entre outros, em Santarém, trabalhou para o Dr. Eduardo Figueiredo, advogado, Dr. Correia de Lima, médico, Coronel Mário Cambezes, Dr. Ruy Leitão, reitor do liceu, Prof. Doutor Veríssimo Serrão e Capitão Costa Pinto. Foi para este senhor, que foi secretário da Rainha D. Amélia, que pensa ter encadernado maior número de livros, na sua grande maioria autografados pelo autor e com dedicatórias.
Mas a sua actividade estendia-se praticamente a todos os concelhos circunvizinhos e principalmente a Lisboa. Alcanena, Alpiarça, Almeirim, Coruche, Chamusca, Cartaxo, Benavente, Alcobaça e Nazaré eram concelhos onde possuíam bons clientes. Em Lisboa, trabalhou para o Embaixador Eduardo Brazão, Eng. Ferraro Vaz, Eng. Gonçalo Ribeiro Teles, Prof. Doutor José Hermano Saraiva, Marquês da Graciosa e trabalhou para o Arquivo Histórico Ultramarino, Fundação Gulbenkian, Misericórdia de Lisboa e Sacor, entre outros.
Em Novembro e Dezembro de 1987 desloca-se ao Em 1968 parte para Lisboa onde trabalha durante dois anos numa oficina de encadernação, passando em 1970 a dirigir os trabalhos relacionados com a sua arte numa firma editora, o que faz até à sua aposentação que ocorreu em 1986, após cinquenta e três anos de trabalho.
Brasil (Recife) onde ministra um curso de encadernação tradicional promovido e patrocinado pela POOL EDITORIAL S/A com a colaboração do Gabinete Português de Leitura e o apoio da Secretaria de Turismo, Cultura e Esportes do Estado de Pernambuco.
Silva Rabico, além de ter sido um excelente profissional de uma arte (artesanal) em vias de extinção, tinha uma verdadeira paixão pelos livros e pela sua terra natal. Dela, coleccionava tudo o que podia, possuindo alguns livros e pequenos opúsculos hoje difíceis de obter. Silva Rabico lia tudo o que encontrava sobre Santarém e tinha conhecimentos sobre a sua cidade para além da média. A sua colecção de livros rondava o milhar o que para uma pessoa de fracos recursos económicos representa um grande esforço e um grande sentido de cultura.
Se hoje posso ter na minha estante o maravilhoso livro Santarém, Princesa das Nossas Vilas, de Areosa Feio - 1929, devo-o a Silva Rabico que num gesto que não esqueço, teve a amabilidade de me o oferecer, quando lhe podia render bom dinheiro. Dizia-me que tinha dois e não lhe interessava ter livros em duplicado. Sabia que na minha mão, seria estimado e auxiliar-me-ia nos meus trabalhos (trabalhecos, digo eu). O exemplar a que me refiro tinha sido adquirido num alfarrabista de Lisboa, como indica a etiqueta.
Possuía muitas centenas de recortes sobre Santarém e outros assuntos que lhe interessavam, como arqueologia e numismática. Cultivava também a medalhística.
Silva Rabico deslocou-se propositadamente da terra onde vivia àquela em que resido, no dia 30 de Julho de 1995, numa distância que ronda os cem quilómetros, para me conhecer pessoalmente ! Não merecia tanto.
Mantivemos correspondência que acabou por criar uma amizade. As cartas de Silva Rabico tinham princípio, meio e fim e estava ortograficamente actualizado. Tinha o dom da escrita e muito com ele aprendi.
Devido aos meus afazeres, por vezes atrasava-me nas respostas. Ao regressar de uma temporada passada em lugares um poucos distantes, procurei responder rapidamente ao meu amigo, até porque tinha dois trabalhos meus para lhe mandar, com o que ficava sempre muito satisfeito. A resposta não apareceu como era habitual e pressenti que algo se tivesse passado. Peguei no telefone esperando ouvir a sua voz do outro lado. Ninguém atendia. Voltei a telefonar em horários diferentes e o mesmo silêncio.
Contei o facto a minha mulher, denunciando os meus receios. Voltei a sair. Telefonicamente, minha mulher informa-me: - Telefonou a filha do Senhor que só te trata por José Varzeano para dizer que o pai tinha falecido.
Perdi um grande Amigo que o “escrevinhar” me trouxe.
Perdeu-se um Mestre de Encadernação que honrou a sua Escola, a sua Arte e até a sua Terra.
Um País não é só feito de “doutores”! Artistas destes devem ser mais conhecidos.
Aqui fica a minha singela homenagem a José da Silva Rabico.
Obrigado por tudo, AMIGO.