quarta-feira, 1 de julho de 2009

A apanha da azeitona

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO Nºs DE 26 DE ABRIL E 3 DE MAIO DE 1991)
O último “escrito” que assinámos neste já centenário jornal, paladino não só de Santarém mas de todo o Ribatejo, foi dedicado “à molhadura”, o acto que vinculava o trabalhador ao patrão.

Talvez não seja descabido referir hoje como se desenvolvia há décadas, uma das principais actividades deste povo e que abrangia não só esta freguesia mas também as limítrofes, praticamente as que constituem o Bairro Ribatejano, onde a oliveira é (era) rainha.

A evolução da vida com o emprego de novas tecnologias fez com que todo o sistema acabasse por ruir e ainda bem.

Os olivais quando não arrancados, foram praticamente abandonados. Árvores decrépitas, trabalho de limpeza (poda) e a apanha do fruto a preços que não compensam o proprietário, motivaram o não accionamento por este dos mecanismos para a sua execução.

Dentro das nossas limitações, iremos então ver como as coisas se passavam.

***

Para a apanha da azeitona e por falta de trabalho nas suas regiões, vinham para o Bairro, no mês dos Santos (Novembro), no dizer deste povo grupos de trabalhadores de Caldas da Rainha, Porto Mós, Alcobaça, Óbidos, Leiria, Figueiró dos Vinhos e de outras zonas.

Além do salário, variável de ano para ano conforme a abundância da colheita e procura de pessoal, tinham direito a “comedoria” fixa que constava de três litros e meio de legumes e meio litro de azeite, por semana, aos homens e metade destas quantias para as mu8lheres. Além disso o patrão fornecia gratuitamente uma esteira para cada duas pessoas (o capataz tinha direito a uma esteira), lenha, louça e sal.


[Olival acabado de poder. Quinta da Granja. Foto JV. 1988]

Estes trabalhadores conhecidos na freguesia e região por serrenhos ou serranhos, comiam e dormiam no quartel ou “casa da malta”, grande casarão dividido em três compartimentos, um destinado aos homens, outro às mulheres e o terceiro era a cozinha onde havia uma grande chaminé para cozer os legumes, no mesmo caldeiro, e um forno para o pão, muitas vezes de milho, proveniente da farinha que traziam das suas terras.

A cada grupo de trabalhadores angariados pelo capataz, que por todos respondia perante o patrão, dava-se o nome de “rancho”que constituía uma unidade e era normalmente da mesma zona, havendo quase sempre laços familiares entre alguns dos seus elementos.

Era usual um rancho servir vários anos o mesmo patrão e o capataz, muitos mais, chegando mesmo essa missão a passar de pais para filhos.

Vinham quase sempre a pé, só as bagagens tinham direito a transporte na galera ou outros veículo similar.

De um modo geral, todas as quintas da freguesia recebiam o seu “rancho” e ainda hoje se podem ver nalgumas os quartéis desactivados.

***
A apanha era feita entre Novembro e Janeiro, condicionada à maturação e outros factores. Sempre que possível os ranchos procuravam regressar às suas terras antes do Natal.

Ainda o sol não era nascido, o capataz tocava o búzio, o que significava ser horas de levantar. A cozinheira, uma serrenha escolhida para essa função, já tinha os legumes cozidos. Cada qual juntava o que lhe podia e assim almoçavam.

Lá seguiam a caminho dos olivais. Elas de lenço amarrado para proteger do frio, saia de ganga, ou cotim, sapatos de cabedal atacados e cardados, as cestas de verga, formando grupos e os homens seguiam normalmente atrás, de varas ou varejões (de eucalipto) ao ombro, panos e quando necessário, alguma escada.

O búzio, ora tocado intermitente, ora prolongadamente, originava um som inconfundível e nostálgico. Ouviam-se vários búzios o que provocava um buziar retumbante.

Para mais fácil apanha, os homens raspavam o chão, com enxadas, por baixo da copa, o que formava um círculo.

As varas e varejões para os ramos mais altos, manejados com perícia ao longo das pernadas em movimentos vibratórios que originavam um barulhar característico, iam fazendo cair a preta azeitona apanhada pelas mulheres que antes de iniciarem o trabalho, “pregavam” com alfinetes as saias, formando uma espécie de calças. Faziam-no para se sentirem mais à vontade pois além da posição dobrada que tinham de manter, por vezes era necessário subir às oliveiras para “ripar” isto é, fazer passar o polegar junto do indicador nos cachos o que provoca a queda da azeitona para uma cesta, não se maçando. Esta azeitona era destinada à conserva em salmoura.

A ligeireza das apanhadeiras que trabalhavam simultaneamente com ambas as mãos, era surpreendente, enchendo rápido as cestas de verga que o paquete, rapaz espigadote despejava no carro de bois, de eixo de pau, conduzido pelo maioral (assalariado permanente) ao lagar.

Os duros trabalhos agrícolas motivaram uma necessidade de amparo que os ajudasse a vencê-los e era assim que aparecia o cantar, tão do agrado do nosso povo.

Na apanha da azeitona, assim acontecia. Os versos (quadras?) de entre velhinhas de muitos e muitos anos, transmitidas de pais para filhos, apareciam novas, de improviso, ditadas por aqueles que a natureza dotou com o dom de saber rimar.

É notório o uso de termos da vida campesina, com evidência para “oliveira” e “azeitona”, muitas vezes invocadas. Feijoca e centeio, rãs e cabras, chocas e rodilhas, semear e apanhar, são algumas das palavras utilizadas que justificam a afirmação. Havia também “motes” feitos que se adaptavam com facilidade ao que se pretendia focar.

Os versos eram ritmados por uma espécie de acompanhamento, suavemente ondulante e que indicaremos na primeira quadra, como exemplo.

A “doce ingenuidade amorosa” tem naturalmente um lugar preponderante. Vejamos como está representada:

1
Os olhos do meu amor
Ai, solidão, solidão
São duas azeitoninhas,
Ai. ai ai, ai ai.
Fechados são dois botões,
Ai solidão, solidão.
Abertos, duas rosinhas,
Ai, ai ai, ai ai.

2
Os olhos do meu amor
... ... ... ... ... ...
São dos que nunca me esquecem
... ... ... ... ... ...
Quanto mais vezes os vejo
... ... ... ... ... ...
Mais bonitos me parecem
... ... ... ... ... ...


3
Semeei salsa na água
... ... ... ... ... ...
Nasceram-me campainhas
... ... ... ... ... ...
Nem os teus olhos me enganam
... ... ... ... ... ...
Nem as tuas palavrinhas
... ... ... ... ... ...


4
A azeitona já está preta
... ... ... ... ... ...
Está capaz de dar aos tordos
... ... ... ... ... ...
Diga-me lá ó minha menina
... ... ... ... ... ...
Como vamos de amores novos (?)
... ... ... ... ... ...

Quando as tentativas de derriço eram mal sucedidas, o resultado transpunha-se para os cantares, acontecendo por vezes ter um significado oposto, uma vez que a arrogância e a não cedência às primeiras, era sinal de “grandes colidades”.
As quadras seguintes, exemplificarão:

5
Anda cá ou cara feia
... ... ... ... ... ...
“Redilha” de chaminé
... ... ... ... ... ...
Se esta casa fosse minha
... ... ... ... ... ...
Corria-te a pontapé
... ... ... ... ... ...

6
Tenho uma terra no campo
... ... ... ... ... ...
Semeada de centeio
... ... ... ... ... ...
Anda cá burrinha nova
... ... ... ... ... ...
Quer te quero pôr o freio
... ... ... ... ... ...


A rapariga respondia muitas vezes com as quadras seguintes:

7
Tenho uma terra no campo
... ... ... ... ... ...
Semeada de feijoca
... ... ... ... ... ...
Anda cá boi matreiro
... ... ... ... ... ...
Que te quero pôr a choca.
... ... ... ... ... ...

8
Tenho uma casa no campo
... ... ... ... ... ...
Trancada a sete trancas
... ... ... ... ... ...
Tenho lá uma burrinha deitada
... ... ... ... ... ...
Que zurra como tu cantas
... ... ... ... ... ...



[Quinta do Freixo, 1986. Foto JV]

Cortando o despique, apareciam de bocas mais idosas e sisudas, algumas “quadras” de índole religiosa como as duas que a seguir indicamos:

9
Apanhemos a azeitona
... ... ... ... ... ... ...
Que tem (n)o azeite dentro
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Alumia toda a noite
... ... ... ... ... ... ...
O Divino Sacramento
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10
O cantar é para espalhar
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O cantar é uma loucura
... ... ... ... ... ... ...
No cantar peço a Deus
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Que me dê sua Ventura
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Ainda que fossem muito usadas as de sabor erótico, se assim se pode dizer, só foi possível recolher uma e em circunstâncias muito especiais.
Todas conheciam, mas diziam que não.

11
Eu quero-te tanto tanto
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Mais do que a mãe que te criou
... ... ... ... ... ... ...
Por muito que ela te queira
... ... ... ... ... ... ...
Não te dá o que eu te dou
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A saudade das terras de origem, também é manifestada nos cantares.

12
Minha terra, minha terra
... ... ... ... ... ... ...
Ela ali e eu aqui
... ... ... ... ... ... ...
Os anjos do céu me levem
... ... ... ... ... ... ...
Para a terra onde eu nasci
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13
Minha terra é Usseira
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Não nego a minha nação
... ... ... ... ... ... ...
Eu não sou como você
... ... ... ... ... ... ...
Que é de lá e diz que não!
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Misturando a azeitona com outros interesses, cantavam:

14
Azeitona miudinha
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Apanhada uma a uma
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Estes rapazes de agora
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Não têm vergonha nenhuma!
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15
A azeitona miudinha
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Que azeite pode render
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É como homem com pouca barba
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Que vergonha pode ter!
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Terminaremos com quadras dedicadas ao cantar:

16
A cantar ganhei dinheiro
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A cantar se me acabou
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O dinheiro que é mal ganho
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Água o deu, água o levou
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17
Tenho um saco de cantigas
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E uma cesta até ao arco
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Vou cantando as da cesta
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P’ra não abrir a boca ao saco.
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Com estes cantares simples, o rancho arranjava energias e disposição para vencer o duro trabalho a que era submetido.

Pelo meio-dia voltava a tocar o búzio para a merenda, refeição muito leve constituída por uma “bucha”.

Ao pôr-do-sol era o regresso ao “quartel” onde já horas antes tinha chegado a cozinheira para preparar a ceia, última refeição e semelhante ao almoço.

Cada qual aproveitava o pouco tempo que dispunha para efectuar algumas tarefas, como o lavar da roupa, muita vezes feito à luz da lanterna de petróleo, nalgum ribeiro próximo que a época invernosa fazia correr.

Era frequente dançar-se (ainda havia forças para dançar!) ao som da gaita-de-beiços pois normalmente havia no rancho um tocador.

O “ballho” era entre os serrenhos, mas havia rapazes da terra que conseguiam ganhar a confiança do capataz e também entravam na dança. Não eram muito e normalmente a sua presença era mal vista pelos mancebos do rancho.

Dois ou três dias antes da adiafa, começava o reboliço no rancho, tratava-se de cumprir um velho “ritual”, fazer bater as mulheres com o traseiro no pé da oliveira!

Enquanto havia quem se resignasse e não opusesse resistência, outras, tornavam-se rebeldes e opunham-se tenazmente, sendo necessário mobilizar os homens mais fortes para as levarem de vencida e cumprirem a tradição.

Algumas eram bem conhecidas pelas dificuldades que apresentavam e o cerimonial tinha de ser bem preparado, sendo apanhadas de surpresa.

Restava a adiafa!


Deixando meia dúzia de bagos nas oliveiras o rancho apanhava-os no dia seguinte e por volta do meio-dia regressava ao “quartel”. Agregados ao símbolo da festa, a bandeira da adiafa, enfeitada com fitas e flores. Tocando e cantando, eram recebidos pelo patrão que lhes pagava o dia inteiro e lhes oferecia comer e beber, não esquecendo fritos regionais, água-pé e vinho.

Comiam, bebiam, cantavam e dançavam, versejando em quadras alusivas ao patrão e familiares.

***
Muitas serrenhas acabaram por ficar na freguesia, constituindo família e ainda há pouco anos as que restavam, não tinham perdido essa designação, o que para a gente local era considerado depreciativo.

Havia natural rivalidade entre serrenhos e varzeenses. Estes não podiam esquecer que aqueles provocavam a descidas das suas jornas. O que para uns era “bom”, era para outros “mau” e isto devido aos condicionalismos regionais.

Tudo isto, como já dissemos, é passado. Não mais voltarão os jornaleiros ao trabalho de sol a sol e a outras situações de injustiça.

Os olivais que restam, estão condenados, contudo o Bairro continuará a ser uma região ideal para a olivicultura. Os processos, em todos os aspectos, têm de mudar e ainda não chegámos lá!

N.I.
Uma palavra de agradecimento para as varzeenses, senhoras Júlia Glória Martins, Guilhermina da Graça Nunes e Rosa da Piedade Pereira que em tempos nos deram muitos elementos sobre o assunto e que nos tiraram dúvidas, já que viveram bem de perto estes trabalhos.