sexta-feira, 24 de julho de 2009

A Toponímia

(PUBICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 31 DE MAIO E 7 DE JUNHO DE 1991)

“Os estudos toponímicos, que fazem seu objecto as designações atribuídas pelos homens aos espaços onde vivem e circulam, tem constituído em Portugal um domínio preferencialmente frequentado por filólogos, etnógrafos, coreógrafos e amadores ou curiosos da pequena história local”.

É assim que se refere ao assunto o autor (1) de um recente trabalho que chegou às nossas mãos.

Somos um curioso da pequena história local que procuramos compilar o que vamos conseguindo ler aqui e ali. Sempre que possível, vamos às “fontes” e ouvimos as populações que têm sempre algo para dizer, que os livros não dizem.

O povo de uma maneira geral dedica interesse ao nome da sua terra e muitas vezes explica-o por intermédio de lendas mais ou menos bem arquitectadas.

Alguns topónimos da freguesia são bem curiosos como acontece com os Casais da Curiosa, do Paro, Porto Mau, Malcozinhado, Espodião e Seca-o-Alho, entre outros.

É frequente a toponímia dupla, o que não é muito vulgar noutras freguesias. Assim, Quinta do Mata-o-Demo ou das Rebelas, Casais de Vale Donzelas ou do Vale Dourado, Casais do Rio ou de Perofilho, Casais da Cabrita ou Cabritada, são alguns exemplos.

Iremos agora indicar o que nos foi possível reunir sobre o assunto.

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VÁRZEA – Comecemos pelo nome da freguesia que é de fácil explicação. Na Revista Portuguesa de Filologia (1947) (2) ao referirem-se a várzea indicam:- “campina cultivada, chã, planície, palavra de cunho inconfundível pré-romano, cuja base bárcena, várcena, oferece o mesmo sufixo átono – ena.

Que a origem do topónimo está na configuração do solo e suas características (geotopónimo), parece não deixar dúvidas, mas nunca o terá sido em função da quantidade.

No sul do País aparece com mais frequência a variante vargem e por vezes varja.

No Dicionário Corográfico de Portugal (3) que consultámos, apareceram cento e três referências a este topónimo, alguns compostos e dezasseis no plural. Das sete “Vargem”, só uma a norte do Tejo.

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VILGATEIRA – Topónimo que é talvez da pré-nacionalidade local, com villa no sentido territorial agrário (rústico) antigo e nunca municipal. O outro elemento designa a fauna bravia que ali proliferava nesses tempos. (4)

Ainda hoje é notório o aparecimento de ginetes ou gatos-bravos na zona, o que acontece também em relação aos texugos.

Os nomes comuns usados nas denominações das povoações foram derivados de plantas, animais (que é o caso), minerais e de diversos, outros empregados sem modificações

O maior número pertence visivelmente à Idade Média. (5)

Pinho Leal (6) ainda que refira a explicação dada, para a qual se inclina, conta uma lenda que diz assim:

“Houve aqui um devoto de deus Baco (diz a tradição), que costumava embriagar-se com água-pé pelo que o denominavam vil-bebedeira e dele tomou esta povoação o nome de Villa Gateira”.

Foi lenda que nunca ouvimos contar por mais que a procurássemos . Em contrapartida ouvimos outra que nos parece mais bem arquitectada. Quem a nos transmitiu, ouviu-a nos primórdios do século.

Reza assim:

A infidelidade de uma mulher levou-a a ocultar o amante em casa. O marido apareceu inesperadamente e fechou a porta. O intruso, tentando fugir, o perseguido pelo atraiçoado ao aproximar-se da porta e vendo-a fechada sem possibilidades de se escapar, exclamou:- Ah! vil (no sentido de infame) gateira!

A partir daí o lugar começou a ser conhecido por Vilgateira.

Era esta a lenda que a velha Airosa, que vivia para os lados do Rio Feitor, contava há muitos anos quando os velhos ainda eram olhados pelos novos como pessoas que lhe podiam ensinar alguma coisa, nem que fossem “histórias” como esta.

A grafia do topónimo passou por várias fases até se ter fixado na actual.

Sem sabermos porquê, a Comissão Administrativa da Câmara Municipal determina (!?) que seja alterado tanto o nome da freguesia como o da aldeia.

Reunida a Junta de Freguesia sob a presidência de Joaquim Lopes da Fonseca, deliberou que a freguesia ficasse a denominar-se de Santo António da Várzea e o lugar de Vilgateira, Vila de Santo António (1936) (7).

Não tenho conhecimento que a alteração tivesse sido ratificada e publicada no jornal oficial – Diário do Governo. Continuamos sim a ter em toda a documentação oficial as designações de freguesia de Várzea e aldeia de Vilgateira.

Encontrámos referenciado outro topónimo igual, lugar da freguesia de S. Simão de Litém, concelho de Pombal.

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PEROFILHO – Parece ter origem no antropónimo Pedro (Filho), nome de um possessor dos primeiros séculos da Monarquia. (8)

Na Idade Média aparece ainda designada por Pedro Filho.

Encontrámos na nossa toponímia referência a trinta e seis topónimos que tiveram por base este antropónimo, associado a outro ou a qualquer circunstância, para melhor identificação.

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ARAMANHA – Por vezes aparece designada por Aramenha.

Topónimo de não fácil explicação. Na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira consideram-no pré-nacional, talvez aproximável de Sarmenha que lembra a notável estância de romanização que é a freguesia deste nome, pois que, o topónimo não deve ser importação dali, por efeito de colonização interna.

No Dicionário Corográfico que temos vindo a referir, só encontrámos esta Aramanha. Sabe-se contudo, existirem pelo menos três Aramanha (9), (concelhos de Caldas da Rainha, Cartaxo e Marvão), sendo a deste último, S. Salvador da Aramenha, povoação muito antiga e que alguns pretenderam identificar com Medóbriga mas que parece ter sido Ammaia.

O nome destas Aramenhas poderá provir, por colonização da Aramenha (S. Salvador), talvez única na altura?

Aramenha também significa erva-babosa ou aloés, plantas liliáceas de folhas carnudas mas que desconhecemos a sua existência na zona.

É por isso muito obscuro que este topónimo e ainda mais se for escrito com um “a”.

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CORTELO – Também designado frequentemente por Corotelo, é vulgar na nossa toponímia.

De origem etimológica controversa, os entendidos divergem no seu étimo.

Recorrendo ao Elucidário de Fr. Joaquim de Santa Rosa Viterbo (10), indicaremos várias hipóteses ali encontradas.

De Corte, “pátio rústico e descoberto, cercado e guarnecido de currais, mangedouras ou coberto, em que os animais e criações do campo se recolhem, guardam, multiplicam e cevam”.

Na baixa latinidade, cortes e curtis se tomaram por um casal, vila, quinta, abegoaria, prédio rústico, horta, quintal (...) Também significou o arrabalde de uma povoação, o pavilhão, tenda ou barraca do príncipe ou general do exército.

De Curte – casal, quinta, abegoaria. Prédio rústico com todo o necessário para a lavoura – o alpendre, pórtico, galilé, pátio coberto e defendido das chuvas (...).

De Coitelho, conchoso, cerrado, um pequeno recinto fechado sobre si que serve de horta, jardim, pomar ou logradouro das casas.

De Curtello, parece ser cutelo ou poda de vinhas, que se faz com ele.

Qual será a origem deste Cortelo?

CHARRUADA – No Dicionário Corográfico encontrámos mais dois topónimos iguais, um na freguesia de Assentiz (Torres Novas) e outro na de Mafra.


Denuncia claramente a actividade agrícola. Charruada é um terreno lavrado a charrua.

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ALCOBACINHA – Topónimo geográfico que também denuncia com clareza a importação por fundadores ou repovoadores da localidade.

Em 1527 ainda era designada por Aldeia de Alcobaça (11), para a distinguir da vila que lhe deu o nome.

Por estes sítios possuiu o conhecido benemérito, Padre Francisco Nunes da Silva, vulgo Padre Chiquito, alguns bens.

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CARNEIRIA – Outra dificuldade para explicar este topónimo que nos parece ser um biotopónimo.



Não encontrámos no Dicionário Corográfico outro igual, ainda que apareçam Carneira, Carneiro e Carneiros.

É um povoado muito disperso e que no século XVI já existia nesta zona um casal com essa designação.

Estará o topónimo relacionado com carneiro, mamífero ruminante? Ou terá por base a planta da família das cucurbitácias, variedade de abóbora, de fruto comestível, cultivado em Portugal?

Também chamam carneira a uma variedade de macieira de frutos doces.

Ainda hoje tudo isto é possível ali encontrar com facilidade.

Afinal, onde estará a origem do topónimo Carneiria?

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OUTEIRO – À configuração do terreno onde se desenvolveu, foi buscar o nome a que vulgarmente de acrescenta “da Várzea”, para o distinguir de outros das redondezas.

Da Várzea por lá se ter instalado em meados do século passado a Igreja Matriz “transferida” de uma várzea para um outeiro.

Geotopónimo vulgaríssimo, ultrapassam as seis centenas os que vimos referidos.

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QUINTÃO – Estes casais, também dispersos, possuem hoje algumas vivendas, com tendência para aumentar, que funcionam como casas de campo que os proprietários utilizam nos fins de semana para fugirem dos grandes centros, onde passam os restantes dias nas suas ocupações profissionais.

O topónimo deve corresponder a “quintana”, “quinta”, que era uma subunidade agrícola, composta de habitações de cultivadores ou proprietários, pomares, terras lavradias (...)

De quintana derivou a denominação toponímica Quinta, Quintães (13).

Quintão aparece mais de trinta vezes na nossa toponímia, quase totalmente a Norte do Douro. O plural também ultrapassa as três dezenas mas tendo alguma representação a Sul daquela região. Quinta aparece noventa e cinco vezes e Quintães vinte e nove.

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O MAIO – Estes casais que se situam na parte mais elevada da freguesia, terão o seu nome derivado das plantas monocotiledónias da família das iridáceas, “Maios” ou “maias”e frequentes no local, florescendo no mês de Maio.

Só encontrámos Maios no concelho de Caldas da Rainha.

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CHÕES – Casais que se dividem entre esta freguesia e a de Moçarria.
Chões/chãos – termo que significa terra plana ou pequena propriedade (14) Ainda hoje se diz na zona, tem um bocadinho de chão.


Chão e Chões, aparecem mais de uma centena de vezes na nossa toponímia, ora sós, ora associados.

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MATA-O-DEMO – Uma quinta e casais. São dos mais afastados da sede de freguesia.

Na Idade Média trazia estas terras um Álvaro Afonso Mata-o-Demo (15), antropónimo que teria gerado o actual topónimo.

Também lhe chamam Rebelas, de riba, topográfico. (16)

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COIMBRÃ – Tal como Alcobacinha, deve o seu nome ao deslocamento de população de terras antigas para outras, arroteadas e ocupadas posteriormente.

Existe outra Coimbrã na freguesia de Atouguia da Baleia, concelho de Peniche.

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FONTE (DE VILGATEIRA) e AZENHA (CASAIS DA) – Estes dois pequenos povoados, perto um do outro, devem o seu nome à proximidade de água, condição de principal importância para as suas origens, funcionando os arqueotopónimos como lembrança da vantagem na sua instalação. Fonte veio mesmo a originar o nome de uma família local, os Fontes.

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CASAL – Topónimo comum a várias povoações da freguesia. Casal era uma fracção de vila, no sentido rústico, agrário, que se veio a tornar independente. Os primitivos proprietários concederam terrenos a servos ou a clientes pobres, para agricultar, após desbravamento, mediante certas prestações, como por exemplo, foros que foram muito abundantes na freguesia.

A palavra ficou restrita aos prédios rústicos não nobres e entra na toponímia normalmente associada a outra, para melhor identificação. (17)

Notas

(1)–“Toponímia e ideologia (s)”, Armando Jorge Silva, Lisboa, 1926-1961, in O Estado Novo–das Origens ao Fim da Autarcia -1926-1959, II Volume.
(2)–Dr. Joseph Marie Piel, Tomo I do Volume I.
(3)–A. C. Amaral Frazão, Porto, 1981.
(4)–Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.
(5)–As Vilas do Norte de Portugal, Alberto Sampaio, 1979.
(6)–Portugal Antigo e Moderno, 1873-1890.
(7)–Acta da Sessão de 20 de Dezembro de 1936.
(8)–Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.
(9)–Lendas, Histórias, Etimologias Populares, (...), Alexandre de Carvalho Costa, 1959.
(10)Edição Crítica por Mário Fiúza, Porto, 1966.
(11)Santarém Quinhentista, Maria Ângela da Rocha Beirante, Lisboa, 1981.
(12)“O Padre Chiquito e os que precisam” in Correio do Ribatejo de 15 de Janeiro de 1982.
(13)As Vilas do Norte de Portugal, Alberto Sampaio, 1979, pág. 73.
(14)“Subsídios para o Estudo da Toponímia Albicastrense no século XVI”, Manuel da Silva Castelo Branco, in ADUFE, Revista de Etnografia, Jan/85, nº 2.
(15)Santarém Medieval, Maria Ângela da Rocha Beirante, 1980.
(16)Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.
(17)As Vilas do Norte de Portugal, Alberto Sampaio, 1979.