sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Os carvoeiros

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 9 DE JULHO DE 2004)



Vieram os PADEIROS, depois OS SAPATEIROS, hoje virão OS CARVOEIROS!
Na nossa MEMÓRIA - XI - O COMÉRCIO E ACTIVIDADES SIMILARES, publicada no jornal de 12 de Fevereiro de 1993, (como o tempo passa ! como não hei-de estar velho !) aflorámos sucintamente este assunto que iremos hoje desenvolver com a “riqueza” que nos for possível.

A MEMÓRIA da presença de carvoeiros no MEU BAIRRO, está cá muito para trás.

Não consigo identificar o mais antigo, parece-me contudo que teria sido o existente à entrada do Pátio do Matafome, ali, ao lado do corredor do acesso ao pátio e onde, por incrível que pareça, nunca entrei e não me perguntem porquê. Não faço ideia de quem seria o vendedor ainda que me pareça que o negócio estaria a cargo de uma família muito conhecida que lá viveu muitos anos e de que conheci os cinco elementos, pais, duas filhas e um filho.

Depois, qual seria ? Talvez ao fundo da Rua Frei Gaspar do Casal e que nessa altura era um beco. Aí, lembro-me de muitas vezes pela mão de minha irmã mais nova e com uma cesta ou alcofa ir ao carvão. Gostava muito de fazer este trajecto pois a filha dos proprietários, uma moça forte, muito desinibida, de cabelos compridos e armados em grande penteado e amiga de minha irmã, cumulava-me de meiguices que eu, criança, muito gostava. A Maria Amélia, para mim, era tudo. Não sei se ainda lá vive e se se lembra deste miúdo que tanto apaparicava. Lembro-me do seu casamento.

A carvoaria era conhecida pela do Pitau, certamente fazendo referência a seu pai, não sabendo eu se era nome ou alcunha. Lembro-me bem do pai que penso seria pedreiro e da mãe, uma mulher alta e magra que despachava a freguesia. Aquela zona pertencia-lhes de raiz.

Que eu me lembre e no MEU BAIRRO, só havia outro local onde se vendeu carvão, logo à entrada num estabelecimento comercial misto, mercearias, fazendas (riscados), taberna e... carvão. Eu gostava de lá comprar o carvão pois tinha a oportunidade de assistir a renhidas partidas de chinquilho disputadas a jarros de vinho, que os vencidos pagavam.

Tanto quanto me lembro, não tenho identificado mais nenhum lugar onde se tivesse vendido carvão no MEU BAIRRO.

O carvão estava posto a granel. A balança de ferro, no lugar de um dos pratos, tinha um cesto de ferro de forma cilíndrica que deixava passar o pó e o cisco (aparas de carvão). O carvoeiro colocava o carvão que retirava do monte com uma pá, no cesto, dando-lhe duas ou três voltas a fim do pó e do cisco sair.

Todas as casas nessa altura tinham uma cesta velha ou alcofa que destinavam ao carvão que muitas vezes se arrumava debaixo da chaminé, lugar resguardado por uma cortina de chita. Nesta altura, meados da década de quarenta, o carvão e a lenha eram o combustível utilizado por toda a gente.

Havia três tipos de fogareiros, os de barro, os de ferro fundido e os mistos (esmalte, barro e ferro) que muitos homens sabiam fazer. Quando uma panela já não merecia arranjo, fazia-se-lhe uma abertura (tipo porta) que ficasse centrada com as asas. Depois, dois ou três buracos no rebordo onde assentava a tampa que nesta altura já não servia e que iriam constituir respiradouros. Com barro bem amassado faziam-se interiormente as paredes com o auxílio de pedaços de telha ou de matéria semelhante. Entretanto, pontinhas de ferro faziam uma espécie de grelha para suspender o carvão. Três locais da parede equitativamente dispostos e mais elevados, eram reforçados com uma chapinha, sendo os sítios onde assentavam tachos, panelas e outros objectos que iam ao lume. Depois, era a cal que tudo tapava, tornando mais sólido e respirando limpeza. Estes eram os mais vulgares e os que minha mãe preferia. Existia um de ferro fundido mas que não era utilizado, não despachava as coisas, como ela dizia.

As famílias tinham de uma maneira geral dois fogareiros deste tipo, verdadeiramente artesanais, um maior e outro mais pequeno que utilizavam conforme o tipo e quantidade de comida. É claro que de vez em quando necessitavam de reparações.

Tinham fama no BAIRRO e penso que em toda a cidade, os fogareiros feitos por uma figura típica da cidade, o Zé U, de Alfange. Percorria as ruas do MEU BAIRRO apregoando o seu trabalho.

Nunca fiz nenhum, não tinha idade para isso, mas vi fazer muitos e tenho a impressão que ainda hoje seria capaz de construir um exemplar!

Muitas casas possuíam igualmente um fogão a lenha que se utilizava normalmente em dias de festa.
Este assunto dos fogareiros já foi abordado por mim na MEMÓRIA - XVIII - O LUME, publicado no jornal de 8 de Abril de 1993, mas falando hoje dos carvoeiros, não podia deixar de voltar ao tema, ainda que de uma maneira diferente.

O carvão, além da sua utilização de combustível na alimentação, era igualmente utilizado nos ferros, de ferro fundido que se destinavam a passar a roupa e que causavam grandes arrelias e prejuízos quando saltava alguma fagulha e queimava a roupa.

Além do carvão, os carvoeiros vendiam igualmente o cisco, constituído por aparas do carvão e que se destinava ao aquecimento das pessoas e das casas. Havia “braseiras” de cobre, de latão e de zinco, conforme as possibilidades económicas e havia mesmo quem utilizasse qualquer caneco de barro ou de qualquer outro material. As “braseiras” tinham de uma maneira geral um estrado de madeira, sextavado ou de oito faces, no centro do qual existia uma abertura circular onde se colocava a “braseira” propriamente dita. Em casa de meus pais existiu uma que durou mais de sessenta anos!

Com o aparecimento de outros combustíveis, como o petróleo, por exemplo, o MEU BAIRRO deixou de ter carvoarias e então, quando se precisava de carvão íamos às “Velhas”, numa travessa que dava para a rua do Matadouro ou então no Campo Sá da Bandeira numas casinhas que julgo pertenciam ao Seminário e onde nasceu o meu avô paterno.

Entretanto o problema do abastecimento de carvão e seus derivados ao MEU BAIRRO fica resolvido com o aparecimento de um vendedor ambulante. Uma pequena carroça, puxada por um burrico de pêlo castanho, o vendedor, moço das minhas idades tocando a corneta, percorria a horas certas as ruas vendendo carvão, cisco e bolas (pó de carvão amassado), produto evoluído e que se tornava mais económico devido à sua durabilidade.

Os meios de combustão foram-se transformando quase sem darmos por isso, o negócio deixou de ser rentável, acabou.

Hoje, onde se compra carvão? Na cidade onde vivo, só nos super mercados de alguma dimensão e nem sempre. Na minha cidade natal, será o mesmo.

Agora, penso que se utiliza fundamentalmente para grelhar peixe ou carne, por um diminuto grupo de pessoas. Qualquer dia, nem isso.

Como as coisas vão mudando!