quinta-feira, 15 de abril de 2010

O Carnaval

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 16 DE MARÇO DE 2001)

Acordei cedo e bem disposto, o que nem sempre acontece. Recostei-me na cama e deitei a mão a um dos livros que tenho sobre a mesa-de-cabeceira. Não são livros de começar na primeira página e ir até ao fim, o que acontece quando se lê um romance, são livros de conteúdos ligados mas que se podem ler separadamente, saltitando conforme o interesse específico e momentâneo do leitor. No caso tratava-se do XIV volume da História de Portugal do Senhor Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão, recentemente dado a público. Procurei-o em quatro cidades (é verdade, não estou a brincar) no centro e sul do país e não foi possível adquiri-lo e acabei por recorrer à nossa cidade onde o encontrei na primeira casa em que entrei.

Peguei no livro, fui ao índice escolher assunto, li dois ou três e acabei por pô-lo no mesmo lugar. Não estava virado para aí!

Apeteceu-me pôr o computador já com mais de seis décadas e que vai revelando algumas roturas, a funcionar, procurando algo no arquivo das recordações.

Apesar das falhas encontradas, alguma coisa se nos avivou e é isso que pretendemos transmitir para o papel, fazendo recordar estes e outros factos às gentes do MEU BAIRRO e da minha geração e dando-os a conhecer aos hipotéticos jovens que nos possam ler.

Pelo menos na minha vivência, a cidade de Santarém nunca teve grandes tradições carnavalescas e isso consequentemente se reflectia no MEU BAIRRO. Na minha meninice, ouvia falar no Carnaval de Alpiarça onde a farinha era rainha e segundo se dizia todos os veículos que por lá passassem eram “obrigados” a parar pagando os seus ocupantes uma taxa que se traduzia por serem enfarinhados. Nas redondezas, não me lembro de ouvir falar em qualquer outro.


Recordo haver restrições ao uso da cara tapada com a consequente intervenção policial e a algum tipo de brincadeiras, consideradas não adequadas.

O Carnaval no tempo da juventude de meus pais, na vigência da 1ª República e segundo contavam, era muito diferente com a utilização, além da farinha, do pó de sapato e de ovos podres, entre outras coisas o que fazia referir a meu pai ser uma pouca vergonha não se podendo sair à rua. Nos salões da cidade os “confettis” abrilhantavam os bailes com arremessos nos mais variados sentidos conforme as preferências das donzelas.

No MEU BAIRRO, os miúdos, que aderem sempre muito bem a estas coisas, alguns a custo conseguiam uns tostões para comprar uma caraça feita de pasta de cartão e exteriormente pintada com uma cor ainda hoje utilizada pelo palhaço rico. Quem não arranjava os tais tostões, resolvia o problema fazendo uma com o cartão de uma caixa de sapatos, desenhando-a à sua medida, fazendo os buracos para os olhos, boca e nariz, pintando-a a seu gosto e fixando-a através de um elástico que atava junto à nuca, tal como acontecia com aquelas que se compravam no comércio do Bairro e que já referimos. Também aqui se vendiam serpentinas avulso já que muito poucos tinham dinheiro para adquirir os pacotes, sacos de papelinhos e estalinhos, igualmente avulso. As garrafinhas de mau cheiro já existiam mas só se vendiam no comércio da “cidade” como nós dizíamos.

Já espigadote, uma querida tia comprou, a mim e aos filhos da mesma idade e no Senhor Zé Magrinho (depois dos Bigodes), permita-me o meu bom amigo a expressão mas só assim é possível a identificação comum, uma novidade da época e a que poucos chegavam: - uma bisnaga, penso que era assim a designação que lhe dávamos

Tratava-se no caso de um pequeno reservatório de secção circular, insuflado, transparente de um lado e colorido do outro (a minha era azul claro) e que possuía um pipo. Como era feito de uma substância com alguma maleabilidade, introduzido o pipo num líquido e pressionada, acabava por encher ficando assim pronta a ser utilizada com novas pressões que originavam a saída de um esguicho que iria molhar as nossas vítimas.

O líquido a utilizar era normalmente água mas havia quem usasse perfume e mesmo ... urina.

Uma das brincadeiras mais usadas por miúdos e graúdos constava da utilização de rabos, isto é, cortavam-se tiras de papel, vulgarmente de jornal que se ligavam por intermédio de um alfinete dobrado na ponta. Sorrateiramente e na melhor ocasião que podia ser sentado ou a andar, se espetava na calça ou saia, no traseiro pelo que a pessoa quando se levantava ou andava, mostrava o traseiro rabudo, motivo de sorrisos, comentários e mesmo gargalhadas, o que punha em alvoroço e por vezes em irritação o contemplado.

Os mascarados que percorriam as ruas do BAIRRO, normalmente em grupos, limitavam-se a vestir andrajosamente (roupas velhas e avantajadas) e quando não tinham caraças, cobriam a cara de negro passando uma rolha de cortiça queimada por ela ou em alternativa “desenhando” grandes bigodes e barbas.

De uma maneira geral os mascarados trocavam de “sexo”, aliás, como ainda acontece.

O que hoje se faz com imitações bastante perfeitas de bicharada e outras, lembro-me que se fazia no MEU BAIRRO com os frutos de uma planta expontânea que unidos com alguma habilidade e sendo verdes, “fabricavam” lagartos que provocavam medo às moças mais impressionáveis pois fixavam-se com facilidade nas suas roupas.

Não esqueço o João Vareiro que festejava o Carnaval saindo com o seu cantil de “louça das Caldas” colocado à cintura e passeando pelas ruas do BAIRRO não deixando de beber um copo com os amigos nas tabernas existentes.


Os trajes finos e a rigor eram muito poucos (damas antigas, ciganas, sevilhanas, etc.) e destinavam-se aos mais jovens, fazendo visitas a familiares e amigos aproveitando-se então para tiragem de uma fotografia que ficaria para a posteridade.

Pela parte que me toca, mascararam-me uma única vez com traje fino de que me lembro perfeitamente e era bem pequeno pensando rondar os quatro anitos. Por vezes mete-me confusão como me lembro tão bem do facto !

Foi um casal de vizinhos, com idade de serem meus avós, que o fizeram, duas pessoas que nunca esquecerei pelo carinho que me dedicavam apesar de terem filhos, um rapaz, o mais velho e uma rapariga, gente já casadoura. Lembro-me bem do nome dos quatro e mesmo das suas figuras. Moravam na minha frente num prédio que já não existe.

Faziam-me todas as vontades e eu corria para eles como se fossem da minha família. Ela então, que era amiga de minha mãe, estava sempre a defender-me de qualquer traquinice que fizesse, já que minha mãe não era para brincadeiras. Pois num ano resolveram mascarar-me de moço de forcado, a rigor. Não sei se alugaram ou fizeram o traje, o que eu sei é que me sentia muito inchado por estar vestido assim, de cinta apertada, jaqueta justa, barrete na cabeça e caminhando todo emproado de forcado na mão. Fiz com eles um grande passeio, para os lados da Escola Agrícola e no regresso tiveram que me trazer ao colo.

Estimado leitor, sobre o Carnaval do MEU BAIRRO e há mais de cinquenta anos, foi o que o meu computador me trouxe à MEMÓRIA. Certamente se lembrará de outras coisas, porque não as revela?