segunda-feira, 26 de abril de 2010

A barbearia

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 26 DE ABRIL DE 2002)


O tema que nos tínhamos proposto abordar, não era este mas no desenrolar da escrita a que o pensamento deu forma, aparece-nos este estabelecimento onde passámos muitas e muitas horas, principalmente na época de férias; eu e os meus amigos.

Estamo-nos a reportar, como é hábito, nestas simples e despretensiosas croniquetas aos anos cinquenta do século passado.

Se existem coisas comuns aos dias de hoje, as diferenças não são poucas. Ainda que a função seja a mesma, as técnicas evoluíram, o ferramental modificou-se, com tendência para a mecanização, os produtos utilizados são completamente diferentes, os cabeleireiros apresentam-se equipados de uma maneira diferente e até os nomes das coisas se alteraram, são mais pomposos e procura-se uma actividade para ambos os sexos em situações e posições consideradas mais evoluídas.


O barbeiro do MEU BAIRRO trabalhava no sábado até altas horas para pôr em ordem barbas e cabelos visto que muita gente só tinha vagar para o fazer nesse dia e por outro lado era para muitos dia de receber a féria. Além de cabelos, havia fregueses certos para a barba que era cortada só aos sábados.

Não se pense que não se trabalha ao sábado, ou que só o barbeiro o fazia. Nessa altura, só o domingo era considerado dia de descanso. Por vezes conseguia-se uma pequena dispensa do patrão que acabava por ser compensada na semana seguinte.

[Junto à barbearia para irmos jogar uma partida de futebol. Que eu saiba, metade já faleceram. Foto de 1958]

Havia alguns bigodes, que muitos dos velhos republicanos não dispensavam, e um ou outro rapaz novo usava o seu, copiado de algum conhecido artista de cinema .Pêras e barba, era raríssimo aparecer.

O mestre barbeiro, quando conhecia menos o freguês, perguntava para desinfectar a cara se desejava álcool ou sublimado.

Alguns dos jovens desse tempo usavam o cabelo “à pipi”, o que significava ser puxado todo para trás, tendo à frente uma grande popa, toda uma estrutura que o “fixador ”armava. Quando acabava o corte do cabelo voltava a aparecer a pergunta sacramental.- brilhantina ou fixador ?

Havia também quem por motivos de vária ordem, nomeadamente económicos e sanitários, o cortasse “à escovinha” ou “à máquina zero”.

A pequena barbearia situava-se no rua principal do MEU BAIRRO, a chamada Avenida e numa posição central, o que também acontecia, de uma maneira geral, com o comércio tradicional e próprio da época. Tinha a competente cadeira giratória para adultos e um banco de madeira, alto, para as crianças. Algumas vezes nele me sentei e quando passei para a cadeira, senti-me um homem!

Um espelho rectangular e ao alto, duas pequenas meses, uma de cada lado do espelho onde o artista colocava o seu ferramental constituído por pentes de alumínio, tesouras de pontas arredondadas, máquinas (manuais) em que se substituíam as peças conforme o trabalho a realizar, várias navalhas com o seu assentador que estava frequentemente a ser utilizado, para dar fio, quando elas trabalhavam, pincéis de forma cilíndrica que se humedeciam em pequenos recipientes, tipo tigelas e invariavelmente de alumínio, depois de previamente abastecidos de um pó branco (pó de sabão) retirado de caixas de papelão em forma de paralelepípedo.

Um pincel avantajado destinava-se a retirar os cabelos já cortados e um pequeno espelho era dado ao cliente para poder verificar se estava do seu agrado o corte feito na parte directamente não visível. Uma escova para o retoque final no freguês era peça indispensável.

Na pequena divisão contígua, encontravam-se as toalhas para a barba e as alvas toalhas destinadas ao corte de cabelos.

As pequenas mesas, de tampos rectangulares e penso, sem ter a certeza, protegidos por um vidro grosso, além de receberem os objectos no tampo, tinham outro para o mesmo fim e por cima da gaveta que o barbeiro utilizava para guardar o dinheiro. Em secção distinta, existiam os recipientes de formas abauladas, feitos de qualquer liga parecida com o “inox”, para álcool e sublimado, a caixa de pó de arroz, da mesma substância, além dos frascos de brilhantina, fixador e até de perfume. A petizada ia sempre cheia de pó de arroz!

Junto da parede oposta à do espelho, encontrava-se uma pequena mesa igualmente rectangular, com trabalhos circundantes de embelezamento sob o tampo e cujos quatro pés de secção quadrangular e longilíneos, eram mantidos em boa posição por uma ligação de madeira entre eles.

Nesta mesa era certa a presença semanal do Correio do Ribatejo que os fregueses aproveitavam para ler enquanto esperavam pela sua vez. Quem não tinha ido assistir aos jogos locais, aproveitava para ler as grandes reportagens em que entravam “Os Leões” ou o “União Operária”. Nas horas mortas de trabalho, a mesa era aproveitada para algum jogo de bisca lambida ou uma partida de poker

Penso não errar ao afirmar que existia um aparelho de rádio portátil.

Além da mesa, por cima da qual existia um suporte feito de ripas para chapéus e bonés e na outra parede um cabide, existiam pequenos bancos de tampo circular, (ou seria quadrangular?) de pés resistentes e confeccionados a partir de duas tábuas que ao meio se cruzavam.

[O autor destas linhas, o barbeiro Ramiro Valamatos (já falecido), Mário Bento e o miudo que morava no pátio ao lado e a quem chamavamos "Marcelino", por brincadeira. Foto de 1958]

Todo o mobiliário era de madeira e pintado de verde mas não sei bem porquê, penso que teria sido o azul a primeira cor utilizada. Nunca me lembro de haver qualquer outra mobília e penso que foi o meu bom amigo, Senhor José de Oliveira que fundou tal oficina e que foi obrigado a deixar devido a outras actividades profissionais pois tinha estabelecimento comercial misto constituído por taberna e mercearia. Quando exerceu a sua actividade de barbeiro, vestia uma bata branca.
Além deste Senhor, que muitas vezes me cortou o cabelo em criança, não posso deixar de lembrar o meu saudoso amigo, Ramiro Valamatos, que já trajava de uma maneira diferente, usando um casaco branco, infelizmente já falecido, vítima da doença que sempre o atormentou. Há muitos anos que era proprietário de um estabelecimento do mesmo ramo na cidade de Torres Novas onde veio a fixar-se e faleceu.

Lembro-me de ter cortado o cabelo, na rua do Matadouro no senhor Horácio, ao lado ou perto da oficina de bicicletas, Pestana.

Como já disse, comecei a escrever procurando traduzir outras reminiscências e quando dei por mim, estava enfronhado nesta que acabei por concluir. É possível que existam falhas e imprecisões que o leitor do MEU BAIRRO e da minha época, corrigirá, se nos ler.