sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O pau

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 9 DE FEVEREIRO DE 2001)


Já se passaram oito anos sobre a publicação do que tinha sido o meu último TEMA VARZEENSE e foram mais de cinquenta!

Considerava então difícil voltar ao assunto devido a vários factores que para o caso não interessa especificar. Referia a falta de abordagem de muitos assuntos, entre os quais o jogo do pau. Como se poderá pensar, não aconteceu um enriquecimento sobre o assunto, principalmente a nível local e o que conheço, faz parte (ainda) da minha memória e transmitido por minha mãe. É evidente que ainda existem varzeenses que conheceram factos semelhantes aos que irei referir e muito mais daquilo que vou dizer mas... se não ficar escrito irá deturpar-se e perder-se com o decorrer dos anos.

Um PAU, feito a partir de uma vara de madeira rija, era robusto sem ser demasiadamente grosso, com alguma flexibilidade e de madeira que a sua altura chegasse à altura da boca do seu utilizador. Próprio o homem de vida campesina, tomava também o nome de VARAPAU, CACHAPORRA, TIRA-TEIMAS, MARMELEIRO e outros, alguns deles utilizados conforme as circunstâncias.

Fazendo parte da indumentária de muitos homens, funcionava principalmente como arma de defesa de pessoas e animais, havendo mesmo quem tivesse o seu PAU domingueiro que utilizava em alturas especiais. Foi muito utilizado na freguesia da Várzea e mesmo em todo o “Bairro”.

Muitas vezes feito de marmeleiro, daí uma das designações, obedecia a um tratamento que não sei especificar com rigor mas que passava pela época própria da colheita, escolha, vara aprumada não muito grossa e com muitos nós.

Além do marmeleiro, arbusto vulgar na região, utilizava-se igualmente a laranjeira, a oliveira e o buxo.

Passava pelo fogo para largar a “pele”, sofrer enquanto quente qualquer pequena correcção no sentido de ficar mais aprumado, sendo envolvido em cal.

Os nós eram à navalha pacientemente abaulados e alisados. Um PAU sem nós, não tinha qualquer valor. Além da configuração apresentada, a estrutura mostrava-se mais rija e consistente. Todo ele ficava com uma cor amarelada ou acastanhada e penso que era bastantes vezes passado com um pano embebido em azeite no sentido de o alisar e lustrar.

A parte mais grossa, a que tocava no chão, encontrava-se muitas vezes ferrada, isto é, embutiam-lhe pequenas peças de metal, ferro ou chumbo.

Como é de calcular, o pau domingueiro era o mais lustroso, o de melhor porte, o mais elegante e eficiente.

Nas actividades campestres, o PAU era um precioso auxiliar, ajudando a transportar cestos ao ombro, por exemplo e nas mais variadas circunstâncias. De pernas cruzadas, o homem a ele se arrimava para descanso momentâneo. Além disso, os mais destros manejadores tiravam a sua licença de caça e os coelhos tinham que se pôr a... pau!

Na segunda década do século passado, a freguesia da Várzea rondava os dois mil habitantes que se ocupavam quase totalmente na actividade agrícola, tendo como fundo a cerealicultura e a produção de azeite. A actividade era intensa e a deslocação à cidade só tinha lugar em situações muito especiais, sendo as feiras da cidade, do Milagre e da Piedade as alturas preferidas pelas trocas comerciais que havia necessidade de fazer Também as feiras de gado (mercados) tinham os seus cultores mesmo que não tivessem gado para vender ou comprar. Bebiam um copo, apercebiam-se dos negócios (aprendendo) e ficavam com uma ideia dos preços praticados. Se o homem do “Bairro” englobava de uma maneira geral o PAU na sua indumentária , ao que se dedicasse ao gado então constituía uma obrigação. Nessa altura, a junta de bois era o tractos da época e poucos a possuíam para lavrar as suas glebas e nos pachorrentos carros, de chiadeira característica, por eles puxados, transportavam os sacos de cereal e a palha que iria alimentar os animais no ano seguinte. Estes pequenos proprietários trabalhavam para os outros à jorna, fazendo os mesmos serviços.

A vida de então fazia-se na própria freguesia e nos dias de descanso, domingos e dias santificados, além do cumprimento das práticas religiosas, os homens juntavam-se nas suas aldeias ou vizinhas, nos estabelecimentos comerciais que eram mistos e onde bebericavam copos de vinho ou de aguardente.

Ou por copito a mais ou por qualquer outro motivo, por vezes, desenvolviam-se zaragatas e como os varapaus estavam sempre presentes, não era raro aparecerem cabeças partidas, suturadas no consultório do médico que na altura exercia clínica na freguesia.

Numa ocasião, por volta de 1926, um dos homens mais temidos pelo manejo do PAU, foi rodeado por opositores que só assim o conseguiram vencer e mesmo nessa situação, não era fácil. O médico encontrava-se em Lisboa onde se tinha deslocado acompanhando um doente, naquele tempo era assim. Chegado o sinistrado, de cabeça aberta e informado da ausência do clínico, não arredou pé solicitando à filha do médico que normalmente o auxiliava nestas situações, que pusesse mãos à obra. Meia hesitante, acaba por aceder e inicia o trabalho dentro das suas limitações.

O valente varzeense, mordendo num lenço para aguentar a dor, e dando coragem à pseudo-enfermeira, ia dizendo:- cosa, cosa ... e os pontos lá iam saindo ! Entretanto, teve de largar o doente para acudir ao namorado que tinha desmaiado ao assistir àquele trabalho!
Florindo da Costa Paulo, o varzeense de que estamos falando e que conheci relativamente bem, era um homem de rija têmpera. De figura meã, mas bem entroncado, as suas mãos calejadas, funcionavam como tenazes. Tez queimada pelo sol, na face arredondada saltavam grandes e vivos olhos e chamavam a atenção, a forte barba, em forma de matacões.

Vestindo à homem do “Bairro”, nunca dispensou o varapau, que o acompanhava para todo o lado, mesmo no ocaso da vida.

Outro episódio que a minha memória ainda não desvaneceu, é o seguinte: Sendo consta, devido a um namoro mal sucedido, os rapazes de uma freguesia contígua, receavam vir aos bailes de Vilgateira, pelo que deixaram de os frequentar até que um dia e por que o período já ia longo, um grupo resolveu pôr cobro à situação e acompanhados dos seus varapaus, apresentaram-se no baile onde dançaram até altas horas, como era hábito, decorrendo tudo dentro da normalidade.

Quando o baile estava prestes a terminar, os rapazes da aldeia que entretanto se tinham organizado, desapareceram como por encanto.



O grupo “invasor” ao regressar à sua aldeia foi surpreendido pelos “ofendidos”, tendo-se desenrolado grande contenda, com enorme alarido e as consequências esperadas.

Consta-me que se as relações eram más, ficaram muito piores e durante muitos anos não houve casamentos entre habitantes das duas aldeias.

Na minha juventude e em férias, desloquei-me algumas vezes a tal aldeia, a pé, com um ou dois amigos e se não sentíamos hostilidade, havia pelo menos desconfiança.

Anos depois, tudo estava diferente e hoje, poucos se lembrarão destes desaguisados.

O manejo do pau requeria muito treino e habilidade, havendo regras como em qualquer outro jogo que os contendores de uma maneira geral respeitavam.

Em Portugal conheceram-se três escolas, a Galega ao norte, a do Ribatejo e a de Lisboa.

Além do já referido, conheci outro bom jogador de pau que se chamava Pedro Ferreira e faleceu aos quarenta e nove anos. Apesar da grave doença que o vitimou, via-o sempre abordoado ao seu varapau.

É muito pouco o que fica sobre o assunto que abordei, mas se algum jovem varzeense ler estas linhas, certamente que ficará surpreendido pois nada disto conhecia.