terça-feira, 3 de agosto de 2010

O Dr. Miguel d`Ascenção, médico e democrata

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 21 DE FEVEREIRO DE 1992)
[Aos 46 anos]

Nasceu na cidade de Évora a 26 de Maio de 1880.

Após o curso liceal, feito em Portalegre, dedica-se ao ensino particular em Estremoz, onde casa bem jovem.

Não se libertando da ideia de ser médico, resolve abalar para Lisboa onde se matricula na Escola Médica.

Fá-lo, afirmando à mulher que, ou era médico ou dava um tiro na cabeça.

Sem dispor de suficientes apoios monetários familiares, inicia uma vida cheia de dificuldades; estuda quando pode nos livros dos colegas e dá explicações para manter a família. Conta sempre com a solidariedade dos colegas, um grupo dos quais retirava da sua mesada uma quota para o colega que dela não dispunha.

O seu estudo não podia ser organizado, havia primeiro que angariar como podia o sustento da família. Só depois para ele se virava e mesmo assim não só o podia fazer quando lhe emprestavam os livros.

[Em jovem]
Nos primeiros anos alguns colegas, sentindo a sua falta de preparação, perguntando-lhe se sempre ia fazer exame ao que ele respondia que não tinha outra alternativa. Com grande capacidade de trabalho e inteligência, em pouco tempo punha as matérias em dia e obtinha êxito. Para o fim, quando algum fazia a mesma observação, ouvia-se logo outros dizerem:- Tomaras tu passar com a nota que vai obter. E assim era.

Apesar de tantas dificuldades, consegue vencer, licenciando-se em medicina sem perder qualquer ano.


Inicia o exercício das suas funções na Vila de Veiros, concelho de Estremoz, mas por sugestão do seu amigo, Guerra Semedo, farmacêutico em Santarém, vem exercer funções para o partido médico que tinha sede em Vilgateira e abrangia as freguesias de Várzea, Romeira, Azóia de Cima, Abitureiras e Azóia de Baixo, vago pela saída do Dr. Alberto de Sousa.

A primeira receita que encontrámos registada no livro competente da Farmácia Mendes (1), é passada em 24 de Janeiro de 1914 para aquele que veio a ser seu amigo e compadre, António Luiz Jacinto, proprietário e negociante.

Foi extremamente proveitosa a sua abnegada acção durante a epidemia “pneumónica”, trabalhando de dia e de noite.

Hábil parteiro, era frequentemente chamado para actuar em situações complicadas, em locais distantes para os meios de comunicação da época. Improvisava a “marquesa” para poder actuar, mandando tirar uma porta que colocava sobre bancos.

Causou polémica os tratamentos que realizou, com êxito, pelo método do Dr. Assuero, numa sala do antigo Hotel Luzitano, em Santarém.

De um recorte incompleto de jornal (2) que nos chegou às mãos, transcrevemos:- “ A aglomeração de doentes que desejavam ser tratados era tal que foi necessário distribuir, a cada um, um bilhete de entrada pela respectiva ordem numérica.

[Doente com a muleta às costas]
Foi tratada em primeiro lugar, uma pobre mulher de nome Júlia da Graça, do lugar do Grainho, 51 anos, e que há mais de vinte se achava tolhida com reumatismo gotoso. Submetida ao tratamento e com enorme pasmo dos pre3sentes, recuperou imediatamente as suas forças. Seguiram-se Justina da Conceição, de 19 anos que sofrendo de igual doença ficou também curada; Manuel Fitas, taberneiro, 60 anos, paralisia do braço e perna, curado; Manuel Joaquim Pereira Colaço (cuja fotografia faz parte do recorte), de 63 anos, paralisia nas pernas há mais de quinze e que após o tratamento pôs as muletas às costas; Felismina Ribeiro, que há mais de dois anos se achava atrofiada pelo reumatismo e que, ao ver-se curada, chorando, exclamava:- Tanta vez que eu fui a Fátima e nem lá consegui curar-me!; Josefina Mendes, surdez, cura rápida; Manuel da Silva, de 68 anos, reumatismo, curado; João Galinha, 75 anos e há oito com paralisia numa das pernas abandonou logo a muleta; Luís Fernandes, 13 anos, gaguez, cura rápida. Vicente Rodera que ao sentir-se curado se abraçou ao médico a chorar; Lucas dos Santos, porteiro do Hospital desta cidade, paralítico de uma perna, há 18 anos, curado.”

A continuação da notícia já não a temos e que devia enumerar mais casos.

Limitamo-nos a transcrever a notícia sem comentários.


Republicano convicto, de sempre, pautou a sua vida por um ideal – a democracia – nunca dele abdicando, apesar das perseguições de todo o tipo que sofreu. Nunca negou o seu voto contra o chamado Estado Novo.

Afastado da função pública que desempenhava, o povo, na sua maioria deu-lhe o seu apoio, preferindo-o como médico e auxiliando-o de várias formas para a sua fixação-

Foi na altura criado um regime de avença anual que se chamava pagar “o partido”. Um alqueire de trigo por pessoa, dava direito a consultar o médico no seu consultório. As chamadas eram pagas à parte.



Fundou com o seu amigo António Luiz Jacinto, em 1917(?) a Sociedade Recreativa Vilgateirense, a que já nos referimos.

Fez parte da Junta de Freguesia (1919) e de 20.10.1920 a 19.07.1921, da Comissão Executiva da Junta Geral do Distrito. (3)

Exerce funções na freguesia durante mais de vinte anos mas por volta de meados da década de trinta, por motivos familiares, fixa-se em Santarém, onde continua a sua actividade até poucos dias antes de falecer.

A quando do seu passamento, ocorrido em 13 de Junho de 1965, o “Correio do Ribatejo” (4) refere que foi professor da extinta escola (superior) e “era um grande protector dos necessitados”.

“A República”, que foi sempre o seu jornal, refere-o como “dedicado republicano exercendo com dedicação a sua profissão e era estimado pelo seu porte de extrema modéstia. (5)

Esteve sempre convicto de que as coisas mudariam e que a democracia voltaria para ficar. Assim aconteceu no dia 25 de Abril de 1974.

Foi um apaixonado pela filatelia.

Que seja do meu conhecimento só o semanário “A Forja” (6) lembrou a sua figura, dedicando-lhe as seguintes palavras:- “... o nome do médico Dr. Ascenção, muito embora tivesse nascido em Estremoz (7), foi sempre um amigo dedicado desta freguesia e das circunvizinhas. O seu liberalismo, sempre em ritmo crescente, ainda hoje é recordado pelos povos desta área, onde prestou valiosos serviços às populações.
Tendo sido perseguido pela polícia política, os seus ideais nunca sofreram qualquer alteração.
Até à sua morte o seu sonho esteve sempre ligado à liberdade e ao amor Pátrio”.

Repousa no cemitério dos Capuchos, tendo exercido a medicina cerca de sessenta anos.

Nasceu e morreu pobre.

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NOTAS

(1)–Livro que consultámos por deferência do seu proprietário, António Elói Godinho.
(2)–Presumimos tratar-se do jornal diário “O Século”.
(3)–"Junta Geral do Distrito", Abel da Silva, in Boletim da Junta Geral do Distrito, 1936, p 206.
(4)–Número de 19 de Junho de 1965.
(5)–Número de 14 de Junho de 1965.
(6)–Número de 21 de Junho de 1979, “A freguesia da Várzea (Vilgateira) no presente e no passado – Núcleo de Santarém.
(7)-Por lapso é indicada esta cidade, talvez por nela ter vivido alguns anos e onde lhe nasceram três filhas.