(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 28 DE NOVEMBRO DE 2003)
Aqui estou novamente para mais uma pequena conversa com os possíveis leitores que eu sei que existem mas que é impossível quantificar.
Muitos dos jornais regionais, como é o caso deste “velhinho”, chegam aos quatro cantos do Mundo e são muitas vezes o único elo de ligação que se tem com as terras de origem e existem portugueses em todos os países do Mundo!
Por isto ou por aquilo, ali acabaram por se fixar e alguns ainda pensam regressar às terras de origem, o que muito não vêm a fazer pelos motivos mais variados.
Morreram os avós, morreram os pais, os irmãos e cada um seguiu a sua vida, um para aqui, outro para ali, as idas à terra começaram a ser mais espaçadas.
A casa onde fomos criados já não existe, os vizinhos já morreram e muitos dos amigos de escola igualmente desapareceram.
Quando vou à minha terra, é meu hábito calcorrear as ruas que ainda me são familiares, nomeadamente as do meu bairro. É muito raro conhecer alguém e reconhecer, não é fácil pois os anos de afastamento são muitos. Além de muitas das casas existentes, algumas em ruína, ficaram nomes de vizinhos e amigos e a vida vivida com as suas pequenas estórias.
Ao ler hoje um interessante artigo intitulado A Vida lisboeta nos séculos XV e XVI- Peditórios e pedintes, de autoria de Victor Ribeiro, publicado no Vol.VIII - Lisboa 1910 do Archivo Historico Portuguez, fez-me recordar o que se passava no MEU BAIRRO há cinquenta anos.
Como temos escrito muitas vezes, o MEU BAIRRO era habitado fundamentalmente por famílias modestas e trabalhadores, operários, trabalhadores no comércio e indiferenciados tal como o funcionalismo de base. Os industriais, comerciantes, profissionais liberais, a burguesia viviam ainda dentro do recinto que tinha sido amuralhado, em palácios ou casas apalaçadas de que restam alguns exemplares. Só depois apareceu o conjunto de vivendas que alguns mandaram construir para os lados de Santa Clara/São Bento.
A mendicidade foi e será sempre um flagelo e tem as mais variadas origens, algumas de contornos complicados. Pede-se para matar a fome, pede-se porque não se tem trabalho, pede-se porque não se quer trabalhar, pede-se porque não tem saúde para trabalhar, pede-se porque o que se ganha é insuficiente para a manutenção da família, pede-se para matar o vício do álcool, pede-se para alimentar a dependência da droga e ... há quem tenha essa actividade como profissão.
A maçaneta da porta faz-se ouvir (nesse tempo as campainhas eléctricas eram muito raras no Meu Bairro e não só) e lá vinha eu a correr saber quem era. Da própria porta, informava:- É um pobrezinho que pede uma esmolinha por amor de Deus. Diz-lhe que tenha paciência mas não pode ser. Havia dias que eram vários aqueles que batiam à porta, mendigando e não havia possibilidades de a todos contemplar.
Por vezes minha mãe mandava-me perguntar ao pobre se queria um bocado de pão e quando era afirmativo, o que normalmente acontecia, lá vinha eu buscar o pão que minha mãe cortava.
Quando o pobre nos impressionava por qualquer motivo, não dizíamos da porta quem era e pessoalmente íamos dizer que se tratava de um pobrezinho assim ou assado e dizíamos logo, dê-lhe alguma coisa, coitadinho. A impressão causada era muitas vezes a velhice, a maneira de falar ou o aspecto. Quando se apresentavam de cabelos compridos, longas barbas, de bordão na mão e de saco às costas, por vezes tínhamos medo.
Muitos deles era gente dos arrabaldes ligados ao campo e que devido à idade, já não tinham forças para trabalhar e nesse tempo não existiam pensões sociais como hoje e os filhos, o que ganhavam, não chegava para sustento dos filhos pois nem sequer todos os dias tinham jorna. Eram os próprios pais que, para aliviar os filhos e já não podendo trabalhar, resolviam pegar num bordão e, saco às costas, lá partiam esmolando de quinta em quinta, de porta em porta.
[Velho portão na Avenida do Meu Bairro.Foto JV]
Quando a dádiva não era pão, transformava-se numa pequena moeda na base dos vinte centavos que junto a outras, ia minorando a miséria.
A minha mãe, dentro das suas modestas possibilidades, foi sempre uma pessoa esmoler. Tinha cerca de meia dúzia de pobres certos, o que significava que todos os meses por lá passavam batendo à porta e que já não necessitavam de fazer o pedido que aparecia sempre dentro das disponibilidades. Já se lhe conhecia o nome e até a origem. Havia sempre uma troca de palavras a propósito da vida e dos seus desaires. Alguns fizeram isto durante anos. Quando deixavam de aparecer, notava-se a sua falta e admitia-se a sua morte ou então a dificuldade em se deslocar.
Ainda que a mendicidade fosse proibida, lá se ia fazendo. Os vagabundos eram apanhados e levados para o Albergue Distrital, trabalhando na quinta onde estavam instalados. Tinham uma farda de surrobeco onde não faltava o barrete. Ouvia-se na altura dizer muitas vezes, se não te portas bem vais parar ao albergue!
Lembro-me muito bem de um homenzinho que se tinha algum defeito era o de beber um copito a mais. Depois de umas fugas acabou por se habituar ao local e tinha o seu dia de folga e lá vinha ele a pé até à cidade, bebendo o seu copito aqui e ali. Toda a gente conhecia o Zé Caneco e havia sempre mais um copo. Quando regressava à Quinta, já não ia sozinho.
Hoje os albergues mudaram de nome e todos nós os conhecemos. A maioria espera, mais dia, menos dia, dar lá entrada, se houver vaga!