quinta-feira, 30 de abril de 2009

"Brinquedos"

(Publicado no CORREIO DO RIBATEJO de 4 de Dezembro de 1992)

O poema da minha prima Anel com que terminei o primeiro escrito, trouxe-me à memória os brinquedos (há regatas com barcos de papel) os jogos e outros entretenimentos infantis (mesmo quando a canalha joga com botões).

Quem sabe se fui eu próprio que lhe dei essa imagem que anos depois se transformou em palavras harmoniosas?

Lembro-me que, enquanto brincava com os meus companheiros, ela observava-nos da janela, sem qualquer hipótese de se nos juntar pois nessa época, as meninas (mais ou menos educadas) não brincavam com os rapazes.

Fastienta por natureza, ficava-se pela janela onde a mãe ou a avó, lhe metia a sopa pela boca abaixo! É um quadro que tenho sempre presente e ainda espero retratar aos seus netos, quando os tiver!
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As crianças de hoje brincam (!) com sofisticados “brinquedos” de milhares de escudos e dezenas de contos, isto para não falar nos de centenas que são relativamente vulgares mesmo no nosso país.

Tudo era naturalmente diferente nessa época, na minha rua e no MEU BAIRRO. Já, então, as bonecas e bolas eram o enlevo de raparigas e rapazes. Nós tínhamos as “trapeiras”, as bolas feitas de trapos metidos numa meia velha de mulher e que tinha a sua “ciência” na feitura, sendo o remate final feito com o auxílio de fio e agulha pois tratava-se de uma cosedura circular a que chamávamos “cu de galinha”.
Quando bem feitas, e havia especialistas, saltavam como se fossem de borracha. De pé descalço pois quem tinha sapatos não os podia estragar e quem o quisesse fazer não era permitido pela vantagem com que ficavam, faziam-se grandes jogatanas de mudar aos cinco e acabar aos dez.

O grande mal para as “trapeiras” era a água pois ao encharcarem-se ficavam muito pesadas e nada convidativo para o jogo.

Fugir à frente do polícia era nossa tarefa diária pois nem no pátio da escola podíamos jogar!

Havia guardas que apareciam para cumprir a sua obrigação, mas outros, que bem conhecíamos, faziam-nos perseguições prolongadas. Até os “à paisana” apareciam! Outros tempos.



As raparigas tinham as suas marafonas conforme a habilidade da mãe ou familiares.
As caixas de folha-de-flandres, normalmente utilizadas em conservas de peixe, eram muito procuradas pela pequenada que as atava umas às outras, formando “vistosos” comboios, procurando-se os desenhos (marcas) mais aconselhados para o efeito. As nossas vozes procuravam imitar o mais possível o apitar.

E as canas que colhíamos arriscadamente nos canaviais vizinhos, depois de peladas a rigor, eram abertas na parte mais grossa para fazermos entrar, devidamente recortada, a cabeça de um cavalo que alguém, mais habilidoso, desenhava no fundo de uma caixa de sapatos. Com um buraco por onde passasse um fio, constituía-se a rédea do “animal”.

Com o auxílio de uma varinha (pedaço de cana mais fino) batia-se no bicho para andar mais depressa. Com uma folha de jornal, faziam-se os “bivaques” e em grupo constituíamos uma “unidade militar” de que fui o general que ainda sou!
Toda a rapaziada tinha um arco, fosse lá do que fosse e que rodávamos com o auxílio da mão, de um pau ou de uma gancheta.

Eu tinha um de madeira (!) que era todo o meu encanto, oriundo de uma antiga bicicleta de corrida. Ainda hoje tenho saudades do meu arco!

Tinha uma gancheta de arame grosso com um cabo de madeira e na extremidade a curva era coberta com um carrinho de linhas, de madeira, a fim de facilitar o andamento.
Os recados, quando fossem feitos de arco, custavam menos a fazer.

Organizávamos corridas, dirigidas quase sempre por um mais velho que estipulava as regras que todos cumpríamos. Havia um amigo que tinha um arco pesadão, de borracha. Ficava por isso, para trás, mas quando nos aproximávamos da meta e já cansados, num último esforço, embalava o dele. Parava gritando que tinha ganho pois, efectivamente, o arco passava sozinho por todos nós!

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Falemos agora dos brinquedos “comprados”, dos “a sério” e que nem todos tinham.
A aquisição era feita nas Feiras do Milagre e da Piedade. Havia dois tipos principais de brinquedos, os de madeira e os de barro. Dos primeiros lembro-me das camionetas de carga, de carros de bois carregados de pipos, das pombinhas que batiam as asas quando as faziam rodar pelo chão e dos ciclistas que ao pedalar provocavam um tilintar que nos agradava. O amarelo e o vermelho com que eram pintados, cativavam-nos surpreendentemente.

Os brinquedos de barro eram constituídos por bonecos, apitos implantados em galos, toiros e outras figuras e pífaros, estes de cor branca e listados de cores garridas.

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Muito mais tarde as trapeiras começaram a ser substituídas por bolas de borracha e estas, muito excepcionalmente, por de couro (!) a maioria proveniente de colecções de “bonecos da bola”, grande loucura da miudagem da época. Posso mesmo dizer que ainda guardo “religiosamente” algumas dessas colecções que tanto prazer me deram efectuar.

As raparigas começaram a ter bonecas de pasta de papelão e ainda conheci algumas de celulóide.

Só agora me lembro de outro brinquedo que nunca mais vi (daquele tipo) e era bastante engraçado – o papagaio.

O Outono era a época mais propícia ao seu uso. Tive muitos que o meu pai tinha a paciência de construir e que causavam o gáudio da pequenada. A distância a que eram lançados, transformava-os em mosquitos.

Deitados do fundo da Avenida ou do recinto da escola primária, sobrevoavam o campo de futebol da União Operária, o Chã das Padeiras. A força por vezes era tanta (havia exemplares enormes) que tinham de ser atados ao muro do recinto da escola e quando o vento apertava mais, a corda partia e lá iam sem nunca mais se verem.

Hoje poucos miúdos conhecerão os “papagaios”. Recordarei que a estrutura da cabeça era feita com o atado de três tiras de cana, do mesmo tamanho e no ponto intermédio.

As extremidades eram ligadas, depois da conveniente adaptação, por corda ou fio, formando em hexágono regular que era coberto de papel de seda, jornal ou qualquer outro mais resistente, colado com cola de farinha.

Do centro e de dois vértices consecutivos saíam fios, a que se chamavam guias e se uniam num ponto comum e equidistante. Da feitura das guias dependia muito a boa ou má navegabilidade.

A outra parte era o rabo, fio comprido que partia da junção de duas guias e ao qual, a distâncias curtas, se iam atando laços de papel, terminando com molho de fitas.

O comprimento do rabo tinha de estar, naturalmente, em consonância com a cabeça para assim se estabelecer o equilíbrio necessário.

A cabeça podia tomar outras formas, menos usuais. Quando de quatro pontas, iguais duas a duas, tomava a designação de “bacalhau” e quando de oito, todas iguais, de “estrela”.

Também eu vim a construir um papagaio para o meu filho, mas agora sem sobrevoar o Moinho de Fau, mas sim Espanha, levando o alvoroço aos “espanholitos”.

Quero terminar esta MEMÓRIA DO MEU BAIRRO com a indicação do brinquedo que mais me deslumbrou, pertencente a um vizinho já crescidote e de que não me lembro do nome.
Instalado no corredor da sua casa, (1) essa sim, sei muito bem qual era, um comboio eléctrico, deixou-me para sempre fascinado e ainda hoje parece que o estou vendo a percorrer as linhas.

Vim a comprar um a meu filho... talvez para tentar tapar a frustração que tive.

NOTA
(1) – Já não existe a construção que tinha uma fachada interessante com pintura de tipo marmóreo.