terça-feira, 20 de outubro de 2009

Os derriços

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 7 DE MAIO DE 1993)


[Rua 2ª Visconde de Santarém. Foto JV, 2005]

Como eram os namoricos no MEU BAIRRO há trinta ou quarenta anos? Seriam iguais a todos os outros na “cidade”.

Em escritos anteriores referi o recato das meninas da minha idade que só saíam à rua por absoluta necessidade, não brincavam com os rapazes e quando muito punham-se à janela vendo passar as pessoas, nas quais, como é evidente, os rapazes eram um alvo especial.

A separação de sexos era rígida e prolongada. Havia escolas distintas para ambos os sexos. Quem ia para o liceu (nessa altura ainda não havia Escola Industrial), encontrava-se a mesma separação até ao quinto ano, só raramente havia uma turma mista no 1º. Para completar a turma das meninas, metiam meia dúzia de rapazes, escolhidos a dedo entre os mais novos!

Por esses tempos, após a 4ª classe, que nem todos conseguiam fazer por vários motivos nos quais se contava uma matéria inadequada à idade e o muito uso, sem grande proveito, da memória, poucos rapazes continuavam os estudos, os outros, nos onze, doze anos, procuravam aprender um “ofício”, como então se dizia, ou inclinavam-se para a parte comercial. Dos meus amigos, uma faixa importante foi para as oficinas de automóveis, na altura em grande expansão e saíram mecânicos, electricistas, pintores, bate-chapas, etc. Outros, preferiram andar mais limpos (como diziam) e procuraram as lojas de fazendas e a carreira de empregado de balcão ou caixeiros. De ambos os tipos, alguns atingiram o patronato.

Com as raparigas era tudo muito diferente. Se dos rapazes poucos continuavam a estudar, das raparigas, muito menos. A maioria ficava por casa, onde aprendia as tarefas caseiras com a mãe, a quem ajudava.

Limpeza da casa, varrer, lavar (roupa, chão e louça), caiar, passar a ferro, cozinhar, bordar, costurar e saber alguma coisa de alfaiate, era próprio da grande maioria das mulheres do MEU BAIRRO.

Algumas raparigas empregavam-se no comércio da cidade, principalmente como “caixas” e outras aprendiam a alfaiate (calceiras) ou a modistas. Todas iam só para os empregos, pelo menos não podiam ser acompanhadas por rapazes, nem que fossem os vizinhos e seguissem o mesmo trajecto – é que parecia mal!

Houve raparigas da minha idade, criadas no MEU BAIRRO, com quem nunca passei de um adeus cá, adeus lá, não porque houvesse qualquer animosidade, mas porque “assim é que devia ser”.

O interesse de um rapaz por uma rapariga era demonstrado primeiramente pela “corte” que consistia em ter os olhos nela o máximo de tempo possível, olhá-la, admirá-la, segui-la, enviar-lhe missivas amorosas.

Nessa altura dizia-se que fulano andava atrás de fulana e elas diziam que fulano lhe fazia a corte.

Nessa época, o Jardim da República, onde se situou o Passeio da Rainha, era vedado por interessante gradeamento assente sobre muro de alvenaria. O acesso era feito por três largos portões que o guarda municipal encerrava diariamente à hora determinada pela edilidade e que não posso precisar. Penso que havia o horário de Verão, mais alargado e o do Inverno.

Lembro-me da construção do lago circular ao coreto e de pedir ao meu pai que me lá levasse para ver os cisnes e peixinhos vermelhos, o que me dava grande satisfação. Alguns anos depois fez-se um pequeno lago quadrangular com uma estatueta central e que penso ainda existir. Antes deste lago existiam três (ou seriam dois?) de forma rectangular, com um repuxo ao meio que foram transformados em canteiros.

De vez em quando a Banda dos Bombeiros dava o seu concerto e o jardim enchia-se principalmente de velhotes muito inclinados para esta arte que nas suas juventudes lhes era muito querida.

Havia nos meus tempos de rapaz uma cabina sonora que ia rodando discos pedidos pelos passantes a troco de uma taxa, intercalando com a indispensável publicidade. O encarregado também vivia no MEU BAIRRO.

Os bancos enchiam-se de gente já entrada na idade e os jovens davam voltas e mais voltas às ruas do jardim, em grupos. Andavam-se quilómetros! Se umas vezes se davam as voltas para as encontrar de frente, outras eram precisamente o contrário, seguia-se o mesmo trajecto. Nesta última situação aproveitava-se para alguma troca rápida de impressões, mas tudo isto longe do olhar das mães, tias ou avós!

Lá se ouvia no altifalante que, ”de um admirador para a menina da saia tal ...” e outras dedicatórias semelhantes.

Não recordo a taxa a pagar por cada disco, mas sei que “A mula da cooperativa”, cantada pelo inesquecível Max e devido ao seu excessivo uso, tinha um preço elevadíssimo e mesmo assim, fazia-se uma vaquinha e todas as noites era tocado, afinal com satisfação dos presentes.

Quando a corte era aceite e o namoro do agrado de ambas as famílias, e isto não podia acontecer em pouco tempo, o rapaz era convidado pela moça a ir pedir ao pai dela autorização para que o namoro se “oficializasse”.

Já se sabia da resposta afirmativa, mas sempre dada com algumas restrições. O namoro era feito à janela com dias e horas marcadas que tinham de ser cumpridas. Nada de passeios juntos. Uma ou outra vez ao cinema mas nunca sós. Competia à mãe fazer a companhia. Também se aproveitavam os bailes que se realizavam nas sociedades locais

Só quando se falava em casamento o rapaz começava a entrar em casa dos futuros sogros, deixando de namorar à janela.

É claro que estas regras não eram rígidas, mas o seu não cumprimento criticado pela sociedade.

As transformações foram-se operando naturalmente e hoje nada resta desses usos, continuando a transformação em ritmo acelerado – o que é hoje, já não é amanhã.

A título de curiosidade direi que o primeiro casamento de que me lembro, foi o do Sr. José de Oliveira com sua esposa, D. Maria da Luz. Devem de estar perto das “bodas de ouro”. Oxalá que as venham a realizar.