domingo, 20 de junho de 2010

Duas mentiras

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 23 DE ABRIL DE 2004)

A passagem recente do dia 1 de Abril fez-me recuar no tempo pois é um dia significativo na minha vida, tendo começado, tanto quanto eu me lembro, em 1960, por isso, já lá vão quarenta e quatro anos! Depois desse, outros se foram verificando que os meus papéis registam.

Antes do de sessenta, uns bons anos antes, mas que não posso precisar pois era um rapazeco, o dia das mentiras funcionou no MEU BAIRRO e de que maneira! Tanto assim, que nunca mais o esqueci.

Ao fundo da rua principal do meu bairro, a chamada Avenida, frente à casa que minha família habitava, vivia, em prédio já desaparecido, um casal, bons vizinhos, gente muito pacata, mais velhos do que os meus pais e de que me lembro três filhos. Talvez nesta altura, já todos tivessem a sua vida própria. Era um rapaz, mais velho e duas raparigas, sabendo ainda hoje o nome de todos, apesar de pelo menos há cinquenta anos não os ver nem saber por onde param! Tenho mais na memória uma delas, então uma jovem alta muito viva que me apaparicava dando-me guloseimas – junto dela estava sempre protegido, fosse de quem fosse! Esta família tinha vivido antes no Pátio Augusto Manuel, igualmente no MEU BAIRRO.

À noite, quando o marido chegou a casa para jantar, a mulher disse-lhe que tinha encontrado fulano, dando-lhe a notícia que tinha morrido o Dr. Sicrano, médico lá na terra, pessoa muito considerada e a quem deviam muitos favores, sendo o funeral no dia seguinte.

Ora o nosso bom vizinho, cuja profissão obrigava ao uso de farda, mas que não era militar, nem polícia, contactou os seus chefes no sentido de obter a competente dispensa e no dia seguinte, logo ao raiar da manhã monta a velha pasteleira, de gravata preta, lá vai vencendo a custo os cerca de nove quilómetros que o levavam à sua terra e isto numa estrada esburacada e por alcatroar.

A Ti M. ... quando o viu partir, esfregou as mãos, dizendo para consigo, já te enganei. Fez as camas, arrumou a casa e à hora habitual, pega na alcofa de esteira e vai a caminho do mercado que ainda ficava longe, com o seu andar pachorrento, fazer as compras diárias.

O homem, logo que chegou à terra, perguntou à primeira pessoa que encontrou, então todas as pessoas se conheciam, onde se encontraria o corpo do Dr. Fulano, ao que o outro lhe terá retorquido:- O quê ? morreu, só se foi agora pois ainda ontem à noite o vi. Só então o nosso bom vizinho viu que tinha caído na esparrela pois era o 1º de Abril! Não perdeu mais tempo e inverte o sentido de marcha. Só havia um caminho a seguir, procurar vingar-se da mentira que a mulher lhe tinha pregado. À medida que ia arquitectando a mentira, pedalava com mais força para chegar a tempo.

[Casa próxima do local onde o "caso" aconteceu, mas na Rua Almeida Garrett. Foto JV]
Uma vez em casa e como tinha calculado, a mulher tinha ido à praça e ainda não tinha regressado - aparece sempre uma vizinha ou uma amiga que faz perder algum tempo na conversa e hoje o almoço podia ser mais tarde já que o marido tinha ido para o funeral, ah ! ah!

O nosso Amigo, apesar de míope, era desembaraçado, pega na sua farda habitual de trabalho, enche-a como pode de trapos e papel, constrói o melhor possível o boneco e pendura-o com um cinto numa trave do quarto e, ó pernas para que te quero, foi enfiar-se na cave.

Sentiu o abrir da porta da sua M... e ficou de ouvido atento, que lá de ouvir, ouvia bem.

Depois de arrumar as compras, era natural que fosse ao quarto mudar de roupa, para estar mais à vontade. O grito profundo de grande aflição não se fez esperar e o nosso vizinho, para evitar a viuvez teve que correr depressa para dizer que estava vivo!

A mentira foi bem pregada, mas podia ter dado mau resultado.

Nunca me esqueci disto, ainda que no texto haja um pouco de criação, o fundamental, é real.
Quem se lembra disto que tão badalado foi no MEU BAIRRO?