quarta-feira, 23 de novembro de 2011

A voltinha dos tristes

Falar de Santarém de há 55 ou 60 anos tem grandes diferenças de Santarém de hoje, ainda que eu esteja afastado dela vai para 45 anos.

As visitas são muito espaçadas e breves. Só não me perco na parte nova porque tenho algum sentido de orientação pois existem locais que desconheço completamente, conheci bem muitos deles quando eram olivais e terras de semeadura.

Naturalmente a parte que procuro mais é a que tem a ver com as minhas vivências e os meus afectos, aquela onde vivi, que conheci bem incluindo grande maioria das pessoas que lá viviam. Quase que me apetece dizer como o meu pai dizia nos seus últimos anos de vida: “Hoje já não conheço ninguém e no meu tempo (queria referir-se à sua juventude) conhecia toda a gente e toda a gente me conhecia.”

Comigo já não foi bem assim mas foi muito diferente do que é hoje.

A cidade, como nós dizíamos sem o perceber bem, era a antiga urbe, a parte medieval que se situava dentro das muralhas que a protegiam e de que já poucos vestígios restavam. Era lá que fervilhava o comércio em ruas, becos e travessas, onde a rua dos Correios e do Central faziam a diferença pela sua largura, alinhamento de construções e tipo de serviços.

Os edifícios dos antigos conventos situavam-se na periferia tal como alguns palacetes.

Era nova então a zona luxuosa de vivendas no planalto de S. Bento, onde tinha sido construído o Liceu Sá da Bandeira. Dos beneditinos penso que ainda resta a cisterna.

O Bairro dos Combatentes era outra zona nova e em construção, mas para gente mais modesta.

O próprio Bairro do Pereiro, ainda que dentro do perímetro que foi amuralhado, ficava um pouco distante e foi lá que se construiu no século XIX o cemitério que ainda serve a cidade e que conheci pela quarta parte do que é hoje.

Campo Fora de Vila, Rafoa, Monte Cravo, Calçada do Monte e Estrada de S. Domingos era tudo considerado arrabaldes. Quem destes locais se deslocasse à parte velha do burgo, dizia que ia à cidade, o resto sendo-o, não o era na linguagem quotidiana.

Mas esta croniqueta tem por título a VOLTINHA DOS TRISTES como os jovens de então lhe chamavam.

Ao domingo era dia de ir à cidade para quem vivia na periferia. Vestia-se uma roupinha melhor e lá se ia em pequenos grupos saber os resultados da bola, postos pouco depois dos desafios terminados, no Placard do jornal diário O Século no stand do Leitão.

[Casa Hipólito]

Eram ali colocadas várias notícias entre as quais os falecimentos.

Após o conhecimento dos resultados, íamos dar uma volta, a voltinha dos tristes, percorrendo a Rua de S. Nicolau em direcção ao Canto da Cruz. Tínhamos à direita o Café Portugal e a seguir a Barbearia de José de Oliveira que também vendia telefonias, Telefunkein, se não estou em erro. Do lado esquerdo a Casa Nobre, que penso ainda existir e era uma grande casa comercial da cidade no campo dos tecidos, logo a seguir o consultório do médico Dr. Ramiro Nobre, figura bem carismática da cidade pelo seu profissionalismo e dirigente desportivo.

[Barbearia José de Oliveira]
Do lado oposto e onde se encontra um pequeno painel de azulejos, lembra-me o que nunca me esqueci, um acidente que ali ocorreu e ceifou a vida a um jovem. Isto aconteceu há sessenta e tal anos!

A Capela de S. Pedro, anexa à Igreja de S. Nicolau e que naturalmente lá continua, com o túmulo do arganilense Fernão Roiz Redondo e de sua mulher Marinha Afonso (Séc. XIV.

Depois, uma travessa à direita, em cuja esquina se veio instalar já nos meus dias a Costa Modas, com grande montra virada para a rua principal, na altura um estabelecimento moderno e muito para a frente. No início desta travessa, situou-se a Tipografia Tejo, onde mais tarde se fixou a firma António Eloy Godinho & Irmão, Lda, especializada em veículos de duas rodas, a pedal ou motorizados.

[Rua de S. Nicolau]

No seguimento da Costa Modas , a sede dos “Caixeiros”, como se chamava ao Grupo Desportivo Empregados no Comércio, com salão onde se realizavam grandes bailes e grandes partidas de ténis de mesa, em que a sua equipa pontificava. Lembro-me de grandes jogadores como Beja, Neto, Trindade (Zeca) e mais tarde o António que foi meu colega na escola primária e no liceu e o Minderico.

Ao chegar ao “Canto da Cruz” e no “canto” da esquerda, o grande estabelecimento de mercearia fina, Artur Lopes dos Santos, que era na verdade um grande estabelecimento naquele tipo de comércio.

[Ao Canto da Cruz]

Tomava-se a rua da esquerda, ou seja, a da Misericórdia. Menos comercial do que a anterior, imperava do lado esquerdo a Igreja da Misericórdia e uma maravilhosa janela de canto. Logo a seguir, um estabelecimento de fazendas e no lado oposto o escritório da advogado e político,Dr. Artur Proença Duarte, que foi muitos anos deputado na Assembleia Nacional e Presidente da Junta de Província do Ribatejo.

[Janela de canto]
Mais uma igreja e das mais importantes das muitas existentes na cidade – a Igreja de Marvila, antiga Nª Sª das Maravilhas. No largo que lhe fica contíguo, os grandes Armazéns do “Cabralão”.

Vai-se dar ao “Terreirinho das Flores”, que num dos vértices em cujo um dos vértices sempre me lembro existir uma taberna, mais tarde transformada em snack-bar. Nesse pequeno largo toma-se a Rua Direita (das Portas de Leiria) e frente ao Largo de Marvila, o velho edifício onde durante séculos funcionou o poder administrativo local e de que me lembro muito bem. Aqui que foi aclamado rei de Portugal D. João IV.

É revestido de azulejos, penso que seiscentistas. Funcionava igualmente a corporação de Bombeiros Municipais.

[Antigos Paços do Concelho]

Esta comercial via, torta porque é medieval (direita por ir em direcção a, neste caso, Porta de Leiria) e por onde se vão encontrando becos, situava-se, não sei se ainda existe, a Electrodinâmica e no lado oposto a Casa Ruivo, importante estabelecimento de ferragens. Era e penso que ainda é uma via inteiramente comercial, mas hoje em franca decadência, pois além dos andares superiores serem habitados, o que hoje só excepcionalmente acontece pelos mais variados motivos, estando em muitos casos em franca degradação, a população habita nas áreas novas e circunvizinhas onde tudo já existe.

Percorrer a velha cidade pelas 22 ou 23 horas significa, excepcionalmente, encontrar alguém e o que poderá ser não muito agradável, encontrando todos os estabelecimentos comerciais fechados, e isto vai acontecendo igualmente noutras zonas da cidade.

O perigo cada vez ronda mais perto!

Chegados ao entroncamento com a “nova” rua Guilherme de Azevedo, e onde se encontra agora o seu monumento, que esteve, inicialmente, à entrada no Jardim das Portas do Sol, havia uma pequena tabacaria. Numa esquina, uma velha barbearia e na outra o Abidis Hotel.

No lado direito, uma conhecida ourivesaria e logo a seguir o “velho” e centenário CORREIO DO RIBATEJO, em lugar onde sempre o conhecemos. Recordo o Dr. Virgílio Arruda, baixo, forte, com os seus óculos muito graduados e sempre uma figura muito simpática, após o seu falecimento, o não menos simpático Bernardo de Figueiredo que o substituiu na direcção do semanário.

A seguir à Adidis, uma engraxadoria com uma série de cadeiras e outra das mercearias finas da cidade, a Mercearia Ribeiro. Pouco depois e do mesmo lado, a ainda existente Espingardaria, na altura, única na cidade e uma casa de Ferragens, que penso ainda existir mas naturalmente com outra gerência.

A centenária Sociedade Operária no velho palácio que a tradição aponta como local de nascimento de Frei Luís de Sousa.



O Largo do Padre Chiquito aparecido no local onde se edificou a Igreja do Salvador sendo aí baptizado o benquisto Marquês de Sá da Bandeira e onde funcionou durante muitos anos a praça de automóveis de aluguer. O nosso avô paterno recebeu o sacramento do baptismo nessa igreja paroquial e ministro por aquele que veio a ser o 1º Bispo de Damão.

Seguindo, encontra-se à direita a Livraria Escolar que ainda vai resistindo à voragem dos tempos, do lado oposto e à esquina, situava-se a importante Livraria e Tipografia Silva hoje desaparecida.

Entra-se assim no Largo do Seminário, na verdade, Praça Marquês Sá da Bandeira onde em finais dos anos 20 do século passado foi erguido o monumento que o recorda.

Os antigos Paços Reais, depois Seminário, Liceu e hoje Sé do Bispado impõe-se pela sua monumentalidade.

Sempre conhecemos no espaço o consultório do recordado oftalmologista Dr. Isabelinha, falecido com mais de um século, figura muito querida na cidade e hoje ocupado por seu filho, Dr. Duarte Gonçalves (Isabelinha).

Naquele largo situava-se um dos três cafés de Santarém, o “Café Brasileira“ muito procurado negociantes. Pensamos que ainda existe a Farmácia Flamea Vitae.

Encostados à Capela da Piedade onde tinham instalado as suas cadeiras, trabalhavam uns tantos engraxadores de sapatos.

Lembramo-me da existência de uma casa de pasto, local de paragem das “camionetas de carreira” e ao lado uma oficina de bicicletas.

Na casa apalaçada onde nasceu o Marquês Sá da Bandeira, viveu durante muitos anos o Dr. Virgílio Arruda. Ambos os factos estão assinalados por placas alusivas.


[Casa apalaçada onde nasceu Sá da Bandeira]

À esquina, a ainda existente, segundo penso, Pastelaria “Bijou”. Avançando pela Rua de S. Nicolau, a casa Conde onde se vendiam cestos de toda a espécie e aí ia comprar os meus berlindes com que o meu filho ainda brincou.

[Rua de S. Nicolau. Outro aspecto]

Mais casas comerciais de um lado e do outro, casas de solas e cabedais, pastelarias e a sede do extinto Sport Grupo União Operária. O pátio da Caravana, a Travessa do Postigo onde funcionou a Camionagem Ribatejana e ao fundo o Vieira dos Frangos.

A alfaiataria “Cravador”, velho orfeonista do Orfeão Scalabitano e mais tarde do Coro Alfredo Keil.

O ainda existente Posto de Turismo onde me lembro de estar em exposição a 2ª Edição de Santarém História e Arte, de Joaquim Veríssimo Serrão e ilustração de Braz Ruivo, dois escalabitanos que me habituei a admirar.

[Santarém. Coração da cidade]

Não tinha dinheiro para adquirir o trabalho, mas hoje faz parte dos meus livros,pois consegui encontrá-lo num alfarrabista.

Acabei de chegar ao ponto de onde parti, à esquina da Farmácia..

A VOLTINHA DOS TRISTES FOI EFECTUADA.