sexta-feira, 8 de julho de 2011

Recepção aos caloiros no Liceu de Santarém em meados do século passado



No meu tempo de liceu as aulas iniciavam-se no dia 1 de Outubro com uma sessão solene realizada no ginásio e onde eram distinguidos os melhores alunos do ano anterior.

Nesse tempo a grande maioria dos alunos trajava de capa e batina, principalmente a partir do 3º ano que era oficialmente a farda do liceu e só os seus alunos se podiam apresentar nos exames assim trajados.



Ouvi sempre dizer que isto fazia parte de um privilégio concedido aos alunos nos primórdios da sua instituição, o que não posso confirmar por falta de elementos nesse sentido.

Durante os três meses de férias, como então acontecia, a maioria dos alunos deixava de se ver, pois residia em terras diferentes e algumas a distâncias consideráveis. Davam-se então manifestações de júbilo com o exagero próprio da idade.

Nessa altura só havia um liceu na capital do distrito e alguns colégios nas cidades e numa ou outra vila de maior dimensão sendo muito conhecido o Colégio Nuno `Alvares de Tomar. Quem queria estudar tinha que vir a Santarém ou hospedar-se na cidade.



De Almeirim e do seu concelho vinham muitos de bicicleta a pedal enquanto outros utilizavam os transportes públicos, principalmente os da Camionagem Ribatejana. Da vila de Pernes havia um automóvel que tinha não sei quantos lugares e vinha cheio.

O perfil do motorista e do veículo ainda se mantém na minha retina apesar dos nomes terem passado.

Do Entroncamento vinham diariamente os filhos dos funcionários dos Caminhos de Ferro que tinham regalias no transporte.

Já andava no liceu quando apareceu a Escola Comercial e Industrial que começou a funcionar precariamente nos antigos Paços do Concelho que durante séculos funcionaram na popularmente chamada Praça Velha.



Existia também o Externato Braamcamp Freire para rapazes e o Colégio Andaluz para as meninas.

No” Galinheiro”, situava-se a afamada Escola de Regentes Agrícolas.

Era este o cenário dos estabelecimentos de ensino da cidade.

Na altura o número de alunos no liceu não ultrapassaria os 500.

***

Previamente trazidos pelos “veteranos” mais entusiastas encontravam-se nas proximidades do liceu a mais variada traquitana em que se incluía os penicos, latas e latões, cornos de carneiros e o mais que se podia recolher. Não faltavam as rolhas de cortiça previamente queimadas (nessa altura não havia dinheiro para comprar batons).

Antes de terminar a sessão solene, um grupo de veteranos formava cordão para fazer caça à caloirada. Nessa altura ninguém ia de automóvel e eram bem poucos os professores que o faziam já que a grande maioria, se deslocava a pé, incluindo o Senhor Reitor, Dr. Ruy da Silva Leitão, que residia na Ribeira de Santarém.



Lá se iam mascarando os mais pequenos, enfiavam-se os penicos na cabeça, viravam-se os casacos e transportavam cartazes com algumas piadas onde não escapavam, muito ao de leve as políticas.

Considerados caloiros eram todos os que frequentavam pela primeira vez o liceu e assim entravam alguns no sexto ano e que constituíam os matulões que passavam pela mesma praxe e eram alvo especial dos veteranos.

No meu tempo não me lembro de haver grandes confusões, a não ser com um que procurou resistir e ficou-lhe para sempre a designação de “caloiro”.



Quando encontro algum antigo colega do liceu e se abordam conversas deste tipo é sabido falar-se no caloiro pois pelo menos eu não me lembro do seu nome. Foi assim que vim a saber que se tinha licenciado em farmácia e possuía um laboratório em determinada cidade.

As brincadeiras que existiam não tinham nada de vexatório e eram aceites pela rapaziada.

O cortejo seguia em fila indiana para a cidade passando pelo Largo do Seminário e fazendo aquilo que na altura era conhecido pela voltinha dos tristes, isto é, Rua de S. Nicolau, ao Canto da Cruz virava-se à esquerda, passava-se ao Terreirinho das Flores depois seguia-se para a Praça Velha tomando a direcção da Rua Direita, passava-se junto ao Largo do Padre Chiquito, então praça de automóveis e regressava-se ao Largo do Seminário. Na escadaria do Seminário (actual Sé) ia funcionar o Tribunal julgando os “crimes” cometidos pelos caloiros. Não se deixava de tirar uma fotografia junto à porta do primitivo liceu que funcionou nessas instalações.



Quando aparecia uma máquina fotográfica, tipo caixote, era muito bom e era dali que alguns, com alguma dificuldade, obtinham as suas cópias, como as que apresento.

Junto ao monumento do Marquês juntava-se a assistência, nomeadamente feminina e constituída por alunas do liceu.

Os advogados de “defesa” e de “acusação” debatiam-se apresentando variada e cáustica argumentação utilizando pelo meio um ou outro termo técnico que os profissionais utilizavam.

É claro que isto dava origem a risadas e galhofas a que o meritíssimo juiz procurava pôr cobro com o clássico “mando evacuar a sala”.



Para o fim, o advogado de defesa já atacava mais do que o de acusação e quase que os papéis se invertiam!

Depois de grande retórica do juiz, lá vinha por fim a sentença que nalguns casos era a declaração de amor feita a determinada pessoa presente na assistência e efectuada sempre de joelhos. É claro que isto era destinado aos matulões, já que os putos que tinham que estar presentes, funcionavam como decoração do ambiente.

Um ou outro caso, mais complicado e depois de” recurso”, era julgado no pequeno ringue da sede da Associação Académica de Santarém, nesse dia, à tarde.

Mais tarde verifiquei que alguns desses “advogados” seguiram mesmo essa carreira profissional.

Principalmente para os putos havia os tradicionais “borrachos”, isto é, a pedido dos “veteranos” enchiam a boca de ar que era esvaziada pela pressão feita pelos dedos indicador e polegar.

De caloiro passava-se a “bicho”, mas depois do natal já era tudo uma família e os putos acabavam por ter um protector a que recorriam em caso de necessidade.



Anos depois e quando já estava a trabalhar lembro-me que na Avenida da República em Lisboa fui interpelado por um meu protegido, de que não me recordo o nome, que estava a completar o seu curso universitário. Retenho, contudo, a sua fisionomia mas naturalmente que lhe perdi o percurso.

Já na cidade onde vivo e por volta de 1990 fui reconhecido por outro, após cerca de vinte e cinco anos de afastamento mas desse lembrava-me do nome. Foi ele que me reconheceu após tantos anos.

Relacionado com o mesmo assunto tenho outro facto a referir. Um dos meus professores que mais tarde veio a ser reitor do liceu quando o filho foi para o primeiro ano veio entregar-mo para fazer parte do cortejo. Lá o preparei tisnando e “paramentando-o. Vim a colocá-lo à testa do cortejo. Consta-me que é médico especialista em Lisboa.



Outro dos caloiros, bom amigo e com quem de vez em quando estou, lembra-me ainda hoje o trabalho que lhe dava de levar-me os livros para casa pois morava próximo de mim!

Apesar do rigor desses tempos desde o uso da gravata a não se poder acompanhar as colegas a partir do paralelo 38 (!), etc., não me lembro de ninguém ser castigado ou levado à presença do reitor para qualquer chamada de atenção referente a este assunto.

Consta-me que a marcha dos caloiros foi proibida a partir de 1961 pois as piadas políticas começaram a ser mais abertas e como tal ... acabou-se.

Aqui fica este pequeno “Quadro de Santarém dos meus Tempos”.